AS ESQUINAS DA VIDA

Guardamos na memória algumas ou muitas recordações da infância e adolescência, e apesar de as más lembranças costumarem ganhar das boas, em quantidade e intensidade, é comum nos concentrarmos nos aspectos mais felizes de nosso tenro passado, tentando fixar a magia de certos momentos, que só depois de muito tempo conseguimos valorizar a contento.

Esquecemos fatos relevantes, ao mesmo tempo em que temos vivas as imagens mentais de outros, aparentemente irrelevantes, como determinada pedra, um brinquedo, uma árvore, um canto de alguma casa, um pequeno passeio, um sorriso (ou choro), um carinho, uma bronca, uma ou mais peraltices e diversas outras caracterizações similares. Eu, particularmente, lembro do leite em garrafa de vidro e a bengala de pão que eram entregues em casa, da tampinha de metal dessa garrafa de leite, que tentávamos tirar sem dobrar (o que era difícil); lembro da venda de seu Manoel (não havia supermercado então) e de seu irmão mais novo. Este gajo (era português), metido a galã, cantava minha prima mais velha (situação hilária, pra mim). Lembro das padarias de esquina, mais comuns em minha infância do que atualmente. Na época, brincávamos ser difícil encontrar uma esquina sem padaria ou uma padaria que não estivesse numa esquina; e acredito que as esquinas sempre exerceram um fascínio, que se estendia sobre todo meu mundo fantástico (aquele que só existe no imaginário de cada um). Era nas padarias, principalmente, que encontrávamos amigos, conhecidos, ou desconhecidas interessantes: as gatinhas. Enfim, a padaria era como um shopping ou bobódromo capenga de que dispúnhamos, numa época sem celular, lanchonete, supermercado, shopping, computador e internet.

Ainda muito novo fiz a minha primeira viagem ao exterior, e no hotel em que fiquei hospedado, durante os dias em que permaneci naquela linda cidade, meu apartamento ficava no décimo andar, bem na quina da estrutura, que se elevava a partir de uma esquina de certa avenida com muita fluência de tráfego. Havia uma grande janela panorâmica, então eu podia olhar o porto e o centro da cidade. Adorei essa viagem, os contatos que fiz, os lugares que visitei, os trabalhos que desenvolvi, mas sempre que podia, me enfiava no apartamento do hotel e me quedava, embevecido, a admirar a imensidão que se estendia a partir daquela minha janela, dez andares acima de uma bela esquina estrangeira. Foi por essa época que aprimorei meu inglês e aprendi que esquina em inglês é corner, e, mesmo sem ligar muito pra futebol, associei que esse termo era usado durante o jogo para definir o que, atualmente, se chama escanteio. No escanteio, a bola é chutada da esquina do campo para o gol adversário, e representa uma ótima oportunidade para se marcar um tento. Essa situação desportiva tinha, para mim, um significado alegórico, porque se aplicarmos o mesmo princípio, com um élan romântico, às esquinas da vida, podemos ter mudança de rumo, uma gama enorme de alternativas, a partir de um chute certeiro em nosso gol existencial, ou pelo menos uma tentativa de acerto, que pode nos fazer repensar toda uma série de incongruências vividas.

Assim, de esquina em esquina, de escanteio em escanteio, fui vivendo e acertando alguns chutes, errando outros e percebendo, após muitas primaveras e outonos, que não era somente o gol que deveria visar.

Em muitas ocasiões, era preferível tentar a tabela com os outros jogadores que, eventualmente, se apresentassem para a disputa. Sempre havia os que se opunham e os que formavam junto, além dos que ficavam sobre o muro, prontos a aplaudir o vencedor, fosse qual fosse, mas o importante era chutar, sem vacilar.

Neste mesmo instante em que construo o presente texto, estou em uma esquina litorânea, ampla, que me permite a visualização parcial de um mar garboso e imponente, que se apresenta ao final de um logradouro lindamente rústico, com chão de areia (onde alguns vizinhos jogam bocha, disputando o leito viário com os raros veículos que passam). De meu ponto de observação, vislumbro o vai e vem de pessoas, durante a temporada de verão, ventoso e quente, seguindo para a areia da praia ou voltando para o abafamento doméstico; indo à capelinha que fica na pitoresca pracinha em frente à minha varanda ou sassaricando sem rumo, para tomar uma fresca ou achar alguém para um papo ocasional. Estou bem, esquinalmente, posicionado, de forma a que possa deixar meus olhos pastarem nesse bucólico burburinho sazonal. Torço para que não se repita aqui o que tanto já vi ao longo do tempo, como o desaparecimento de pessoas, lugares, objetos, alimentos, oportunidades e situações agradáveis, dando lugar a algo ou alguém, no mínimo, insosso, que vai desmantelar a aprazível situação anterior e mudar o cenário momentâneo para pior. Aquele jardim da alma, que tem de ser regado pelo bom astral das atitudes despojadas de má fé ou indiferença, vai desertificando aos poucos, e só a saudade e a lembrança conseguem diminuir a tristeza que tenta, então, se impor.

É hora de mais um escanteio estratégico.

Pode ser gol olímpico ou tabelado, mas não pode ser desperdiçado.

Tenho de fazer barulho, o bom barulho, me associar a outros barulhentos, para ganharmos, quem sabe, no grito, a possibilidade de preservação de mais este cantinho bucólico e tranqüilo, onde o desassossego comum à maioria de nós todos, nestes dias turbulentos, ainda não se estabeleceu.

O problema que enfrento, em meu íntimo, porém, é paradoxal.

Escolhi viver aqui para curtir o silêncio, a reclusão e a quietude da alma.

Para conseguir preservar tudo isso, talvez tenha de fazer barulho e brigar.

Sinto-me, às vezes, como aqueles fanáticos extremistas, que alegam ser preciso fazer a guerra para conseguir a paz.

Mais um dilema, mais uma esquina da vida a ser contornada.

Tomara que tenha uma padaria por lá.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 05/09/2015
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