Visitações Literárias - Quero Retornar a Macondo
Para mim, não há locação literária mais bela e excêntrica do que o lugarejo cordialmente oferecido a nós por Gabriel Garcia Márquez. Sempre me recordo de Macondo com um nó de saudades na garganta e um receio irracional de que um dia deixe de ser meu lugar imaginário preferido. Cem Anos de Solidão me fez amadurecer imensamente, tanto como leitor quanto como escritor – dificilmente lerei algo tão emocionante e nunca escreverei com tamanha maestria. Já estive nessas terras duas vezes, em fases distintas da minha vida, e em cada uma delas tive sensações e visões diversas.
Minha primeira passagem pela cidade foi bem rápida e indiferente. Adolescente, levando apenas uma mochila nas costas, achei tudo muito pitoresco e ao mesmo tempo simplório. Passeei por suas ruas com um misto de divertimento e pena, um típico jovem turista arrogante a rir-se do provincianismo dos habitantes, julgando erroneamente sua simplicidade como um defeito. Tendo em mãos uma edição puramente textual, me perdi em seu labirinto genealógico, a ponto de ficar zonzo com tantos Josés Arcádios e Aurelianos a desfilar pela história. Como se me movesse dentro de uma bolha transparente, nada provei do que me era oferecido aos sentidos, com exceção dos olhos distantes e dos ouvidos pouco interessados. Achei um absurdo as pessoas se maravilharem com pedras de gelo e magnetismo, porém nem suspeitava da minha própria ingenuidade literária disfarçada de busca por lógica verossímil, por não entender a razão de tanta gente perder a memória, do padre levitar, daquele homem não sair de perto da castanheira. Pobre do meu eu imaturo dessa época, inconsciente da dádiva de ler nas entrelinhas, sem nem saber o significado do termo “realismo fantástico”. Com total desapego, apanhei um cacho de bananas para comer no caminho, dei um breve adeus aos restos poeirentos e parti, sem olhar para trás. Por sorte, o tempo cura mazelas e corrige injustiças. E também nos dá novas oportunidades.
Depois, já passando dos trinta, tive novamente a chance de regressar, dessa vez carregando uma bagagem muito maior. Não estava só de passagem, tinha muitas caixas e malas, estava decidido a ficar mais tempo entre ciganos, tormentas tropicais e borboletas amarelas – e tirar melhor proveito da estadia. Munido de uma edição mais moderna e caprichada, fiquei por um longo e preguiçoso momento a contemplar o anexo do livro que trazia a extensa árvore genealógica dos Buendía – com tristeza, concluí que a década e meia que separou a primeira da segunda leitura me fez esquecer de boa parte dos ali presentes. O primeiro passeio tinha sido como um pacote de uma semana passando por diversos países, aquela loucura de olha-fotografa-corre-fotografa-próximo-fotografa-corre-fotografa-adeus. Nessa segunda vinda, decidi ser mais slow tourism, degustar a obra em lugares confortáveis e tranquilos, admirar sem pressa as pessoas e suas moradas, usar viradas suaves de páginas e pausar a leitura para assimilar melhor capítulos concluídos de forma intensa (e foram muitos). Foi como tirar férias de três meses, com celular desligado e nenhuma preocupação maior do que conhecer cada recôndito de Macondo e descobrir milagres ocultos que me escaparam da primeira vez. E como valeu a pena! Pude notar encantos sutis nos detalhes: apreciei a portentosa caligrafia de Melquíades, ouvi de forma vívida a triste serenata de cítara e voz do pobre Pietro Crespi, senti o gosto de terra e aflição na boca de Rebeca, ascendi aos céus com a bela Remédios. E Úrsula, então? Que mulher! Olhei diretamente em seus olhos, e o que vi não foram janelas da alma, foram planetas, galáxias, um universo inteiro de força, determinação e muita, muita, muita fibra. Quando as páginas restantes foram escasseando, já comecei a sofrer por antecipação, parei tudo e priorizei essa apreciação literária, uma reta final que destruiu meu coração e me deixou com olhos marejados ao ver ir-se embora a marcante, estupenda e última frase dessa obra-prima.
Como pode a solidão ser tão acalentadora? Como é possível sentir ternura por figuras tão tristes, querer o bem de pessoas tão excêntricas? Que mágica é essa que nos faz reconhecer personagens com nomes tão similares, apenas pelo seu jeito de agir ou falar? E, principalmente, como pude ser tão comedido neste texto, mantendo-o sucinto, apesar de querer dissertar a respeito de cada detalhe visto? A indiferença não cabe aqui, pois Cem Anos de Solidão não tem meios termos, resulta em paixão eterna ou em desprezo profundo.
Já tenho planos para quando completar meus quarenta anos: reviver a experiência de retornar a Macondo. Respirar seu ar místico, rever velhos amigos, deixar o fantástico se infiltrar nas coisas corriqueiras e servir de gatilho para reflexões mais profundas e edificantes. Que a fonte de prazer da leitura seja tão extensa como a chuva que castigou Macondo por anos. Que eu possa chegar logo à cidade – não importando se de liteira, de trem cargueiro ou mesmo a bordo de um galeão espanhol – e sentir em todos os elementos a força da maldição que move o lugar, a magia que se acumula e usa, como válvula de escape, singelos momentos fantásticos em meio à normalidade do cotidiano. Mal posso esperar para, mais uma vez, apreciar momentos de solidão no século dos Buendía.