Relato familiar

A primeira vez em que vi o meu avô chorando foi por causa de meu tio. Acidente de caminhão, batida, perigo, mas a vida. Meu tio sempre foi problemático, foi o que cresci escutando. Álcool e outras coisas, me parece. Já escutei de tudo, mas nunca me importei, e de fato nem sei sobre a veracidade de que falavam.

Ele sempre me chamou de “Careca”, apelido desde bebê mesmo, por causa de meus cabelos ralos e infantis.

Me recordo dele jogando bola em frente a casa de meus avós, casa que hoje é só imóvel. Me recordo dele fazendo piadas, fumando seu cigarro e batucando um samba qualquer.

Recordo também de quando levou eu e meu irmão ao show dos mascarados do Kiss. De quanto achava aquilo coisa de maluco, mas que avisou: “se divirtam”. Afinal de contas, a vida também é pra isso.

Me lembro de que com o tempo ele foi perdendo tudo, cabelos, roupas, mulher, dentes, casa, filhos, emprego, família. Vez em quando eu o via por aí, vez em quando nos encontrávamos e ríamos um pouco, procurando assim resgatar alguma coisa já inatingível, longe demais.

A última vez em que vi o meu tio chorando foi sobre o corpo de minha avó. Corpo duro e translucido, despido de vida, imponente pela morte que havia se instalado.

Ele pediu desculpas, bateu com uma bíblia sobre aquele corpo, se desmanchou em lágrimas e berros como uma criança que se afasta demais, que se perde de si. Eu nunca mais vi meu tio.

Ontem, pela noite, meu pai me ligou. Essas notícias são assim. Meu tio estava morto, fora esmagado pelo peso de uma carreta enquanto estava trabalhando.

Eu, parado em meu mutismo de memórias e espanto, pensei que bem antes, logo quando o útero fizera a sua parte, meu tio já havia sido esmagado pela vida.

Agosto/1/2015