Cândido

“Honra é a consciência externa e a consciência é a honra interna”

Arthur Schopenhauer

“A prática sem a teoria é inútil. A teoria sem a prática é inútil”.

Lou de Olivier

Estou num momento de conhecer ‘novos’ autores. Aliás, sempre estarei. Além da morte a única certeza na minha vida é a de que morrerei sem ler todos os autores e todas as obras que gostaria ter lido. De 2014 para cá, povoei minha casa com Hesse, Hemingway, Fitzgerald e finalmente, Voltaire. Acontece que este último se tratou de um encontro. Sim porque, diferentemente dos outros, eu não o fui buscar, mas ele me apareceu, através de um ‘hippie punk’ que, segundo a sua impressão da nossa breve e eficaz relação, fui sua ‘anja’ de Pipa. Então ele também foi como um querubim, que veio me trazer de algum recanto celestial um presente cósmico conhecido por “Cândido ou O Otimismo”, desse tão nobre iluminista.

Claro que já havia conhecido Voltaire através das célebres frases de notórios pensamentos. Mas, sem mais nem menos este rapaz me traz este livro que, no desdobrar de sua leitura, então eu percebo que se tratava exatamente da minha forma de ver a vida, e da leitura que eu busco fazer dos fatos que nela se dão. Há um ano vim morar no nordeste e, neste ano, não posso dizer que vivi um mar de rosas, tampouco vivi um inferno absoluto, mas que se tratou de uma interação entre as duas coisas, uma sucessão de êxitos e fracassos que, desse uma narração poderia bem ser análoga ao Cândido, assim como o otimismo que animou e anima meus dias e mantém acesa a chama que assegura a minha resolução.

No entanto, este conto teve por propósito a sátira, característica que dificultou a vida de Voltaire, pois que sofreu perseguições e chegou a ser exilado da França por ser crítico das principais instituições da sua época. O próprio otimismo aparece em tom ridicularizado sob o jugo do inocente Cândido apreendido por seu inquestionável mentor Pangloss. Também o clero, o exército, a monarquia absolutista, a nobreza e seus valores, endossam suas alegorias críticas que provavelmente foram recebidas de formas bem distintas da qual eu própria recebi em pleno século XXI. Obviamente é precisamente esta a característica que torna uma obra imortal. Nunca deixar de fazer sentido, ainda que se depare com tão distintas realidades, horizontes de compreensão e consequentemente suas infinitas interpretações.

O nome no francês Candide, correspondente a Cândido no português, já revela as intenções do autor para com o caráter de seu protagonista. O termo advém da expressão “candura” que significa “brancura” ou “credulidade ingênua”. A narrativa é rápida no desenrolar dos seus fatos. Também apresenta características do fantástico, pois seus personagens tem uma condição sobre humana de se imporem em situações extremas. Cândido é expulso do castelo onde levava uma vida confortável e abastada, e mais adiante descobre que após este ocorrido o castelo foi invadido pelos búlgaros que mataram todos os ali residentes com requintes de crueldade. E assim podemos resumir o ritmo da narração desta obra, ou seja, a sorte de um capítulo é o azar do outro e este que pareceu se tratar de um azar se torna a sorte do seguinte. Enfim, nada é duradouro, tudo é circunstancial. Na vida de Cândido, se ganha para perder e se perde para ganhar. Eu diria, em minha singela e limitada compreensão da realidade de que esta é a própria dinâmica da vida e que eu, depois de me expor a lugares estranhos com pessoas desconhecidas, tive a ‘sorte’ de senti-lo e compreender parte deste movimento.

Nessa lógica de perde-ganha e ganha-perde, é possível sustentar dois pontos de vista antagônicos por sua própria natureza. O otimismo que privilegia a ganha e o pessimismo que destaca a perda. E é isso que o autor faz ao contrapor o ponto de vista otimista de Pangloss com a visão negativista de Martinho, um pensador que Cândido escolhe justamente para confrontar as suas convicções. Incrivelmente, o desencadear dos fatos confirmam as duas posições que se equivalem, mantendo cada um a sua razão. Cândido e Pangloss afirmando que todas as coisas acontecem para um bem, e Martinho de que o mundo é devassidão e ganância, encadeando todas as coisas para seu mal e destruição.

A consciência de Cândido é alterada no último capítulo do livro. A essa altura Cândido se encontra, bem ou mal com seus principais companheiros e a amada Cunegundes, por quem ele tanto lutou. Nesse ponto já não lhe interessam mais saber se tudo acontece para o bem ou para o mal, mas sim de que é preciso trabalhar para que as coisas aconteçam. O bem e o mal são circunstanciais, portanto insustentáveis, já o trabalho é a condição para a substanciabilidade desse mal ou desse bem. “Devemos cultivar a nossa horta! Cuidar do nosso jardim!” é a última frase de Cândido no livro e curiosamente reproduzimos essa metáfora até hoje, pois dificilmente alguém nunca escutou que ‘precisamos cultivar o nosso jardim para atrair as borboletas’. Na maturidade da consciência, a candura é convertida em coragem.

A candura é também uma propriedade da criança, e é essa mesma pureza ingênua que a expõe à vida, desde as intempéries dos perigos ou ao incrível encantamento pelas descobertas do mundo. Na vida adulta, tendemos a perder essa candura, naturalmente, em virtude da prudência, numa primeira instância. No entanto, a prudência pode se transformar em medo, quando este adulto já não pode abandonar o conforto estéril do lar, ou de um casamento falido, se relaciona com as mesmas pessoas de anos, de sempre, está apegado a sua rotina, nada pode lhe escapar do seu ‘devido’ lugar, busca se proteger de todos os perigos, vive uma vida inautêntica, covarde, para finalmente ser uma pessoa infeliz que se lembra dos bons anos vividos na juventude, da infância, da sua candura morta de ‘morte matada’ com o seu consentimento e pior, com o esforço de uma luta interior.

Se no seu ponto máximo a prudência se converte em medo, a candura ou otimismo se converte em coragem. É preciso coragem para cultivar nosso jardim, escolher as nossas flores, nosso jardineiro, arrancar as ervas daninhas e ainda, correr o risco de que nossas flores não floresçam por praga ou porque temos de aprender muito sobre jardinagem. Coragem até, para simplesmente admitir que jardinagem não é a nossa praia. Então sairemos do nosso castelo e vagaremos por aí provando o que há de bom e de mal para o papel que nos cumpre desempenhar no mundo. Mas não bastará jamais viver uma vida que se sustenta e se desequilibra. Vamos ter de aprender a trabalhar e a colher os nossos próprios frutos, para que a nossa candura e coragem não sejam ainda convertidas em quimera.