EM FÉRIAS COM PAPAI (É como se eu restaurasse meu sistema operacional, funciono melhor!)
Voltar à terra onde nasci é como entrar em uma cápsula que só o coração entende. Cada esquina tem cheiro de infância, cada objeto guarda alma, e cada reencontro reflete o que fui. Não se trata apenas de nostalgia — é necessidade. Preciso desse mergulho no passado para decifrar o presente, como quem relê um livro querido não para repetir os passos, mas para compreender melhor as entrelinhas. Araguaína, onde vivi os meus primeiros vinte anos, ainda me reconhece. Me acolhe sem exigências, como se o tempo entre nós tivesse feito apenas uma pausa.
Com o tempo, percebo que não volto apenas ao lugar, mas também a mim mesmo. E, curiosamente, saio de lá mais inteiro. Meus pés sabem o caminho, e meu peito sabe o que sente. Essas visitas são como atualizações do meu sistema operacional — ajustes sutis que me permitem viver o presente com mais clareza. Afinal, como disse Kierkegaard: *“A vida só se compreende mediante um retorno ao passado, mas só se vive para diante.”*
Desta vez, fui recebido por um silêncio antigo, desses que não fazem barulho, mas dizem muito. O cheiro da oficina do meu pai me puxava pelos sentidos — graxa, poeira fina e lembrança. Aos oitenta anos, lá estava ele, ainda firme, afiando a tesoura com que corta lonas e remenda guarda-chuvas. E, num canto funcional, reencontrei a velha máquina de costura, com a marca em alto relevo: "LEONAM". Um detalhe que só agora percebi: lido ao contrário, o nome se revela como "MANOEL" — o nome do meu pai. Como se o tempo houvesse escondido pistas para que apenas hoje eu as descobrisse.
Aquela máquina, que um dia foi vendida em tempos difíceis, foi comprada de volta por ele — não apenas por seu valor prático, mas por carregar a presença invisível de minha mãe. Era ela quem a usava por horas a fio, moldando tecidos como quem tece destinos. O som ritmado do pedal ainda ecoava na minha memória. E nós, seus filhos, vestidos com roupas idênticas feitas de um mesmo tecido comprado em metro único, zombávamos de nós mesmos: “a turma tinta”.
Tentei lembrar de seu rosto, mas o que me veio foi o formato do amor dela — simples, constante, silencioso. Talvez seja isso o que reste de quem amamos: uma presença sem corpo, mas cheia de forma. E ali, naquele exato momento, compreendi que nossos objetos guardam as vozes de quem os usou, como se fossem relicários de afeto. A máquina, silenciosa e presente, era como um sussurro do passado dizendo que o amor, quando verdadeiro, resiste ao tempo.
Meu pai, com olhos marejados e voz firme, confidenciou que aquela máquina era mais que uma ferramenta — era um elo. Uma extensão da presença dela, ainda ajudando, ainda ali. Aquele gesto me tocou profundamente. Não chorei por arrependimento, mas por gratidão. Gratidão por entender, mesmo tardiamente, tudo o que significava.
Hoje, mesmo sendo pai, continuo sendo filho. E compreendo meu pai com os olhos daquele menino que um dia segurou a barra da saia da mãe. É curioso como, com o tempo, passamos a ver nossos pais não apenas como figuras de autoridade, mas como espelhos do que também somos.
Minhas raízes, embora longe do solo, continuam a crescer — mas agora para dentro. Em silêncio, peço a Deus mais tempo. Não para mudar o passado, mas para honrá-lo. Porque só quem sente saudade sabe o peso exato do amor. E meu pai, ainda vivo, é meu último elo com tudo o que me ensinou a ser inteiro. Ele é meu presente — e, por isso, eterno.
Esta crônica é um belo exemplo de como a experiência pessoal e a memória afetiva se entrelaçam com temas caros à Sociologia, como a identidade, a família, o lugar e a cultura material.
Com base nas ideias principais do texto e com um olhar sociológico, preparei 5 questões discursivas simples:
1. Lugar e Identidade: O autor descreve o retorno à sua terra natal como uma necessidade para se compreender melhor e sentir-se "inteiro". Do ponto de vista sociológico, como o "lugar de origem" (terra natal, raízes) e a memória ligada a ele contribuem para a construção da nossa identidade individual e social?
2. A Sociologia dos Objetos: A máquina de costura no texto é mais do que uma ferramenta; ela guarda a memória da mãe, lições de vida e a própria presença dela. Como a Sociologia da Cultura Material (ou Sociologia dos Objetos) nos ajuda a entender como objetos cotidianos podem carregar significados sociais e afetivos profundos, funcionando como "relicários de afeto" e portadores de história familiar?
3. Dinâmicas Familiares e Papéis Geracionais: O autor reflete sobre como, com o tempo, ele, sendo pai, passa a "compreender" o seu próprio pai de uma nova maneira. Sociologicamente, o que a crônica revela sobre a dinâmica das relações familiares e a evolução dos papéis e da percepção entre pais e filhos na vida adulta, ao longo das gerações?
4. Memória, Passado e Compreensão do Presente: A crônica sugere que "a vida só se compreende mediante um retorno ao passado" e que a memória, ativada por lugares e objetos, ajuda a "decifrar o presente". Como a Sociologia estuda a importância da memória (pessoal e coletiva) na construção da identidade individual, na interpretação do mundo atual e na forma como nos relacionamos com o passado e o futuro?
5. Legado e Conexão Intergeracional: O texto toca na ideia do que permanece de quem amamos ("uma presença sem corpo, mas cheia de forma"). Sociologicamente, como podemos analisar a ideia de legado e as formas (materiais e imateriais, como memórias, valores, histórias) pelas quais as gerações se conectam e transmitem aspectos de sua experiência e identidade umas às outras?