OS CINCO SENTIDOS

Meus cinco sentidos, de vez em quando, me pregam peças. Às vezes, quando menos espero, eles trazem à tona lembranças tão remotas que mal acredito que elas ainda estão comigo. É engraçado porque qualquer coisa pode dar início ao processo. Pode ser um ruído, um aroma, ou um biscoito.

Quando eu estava com dois para três anos, vim morar em Ipanema, bairro residencial de classe média, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Naquela época havia pouquíssimos prédios e o gabarito era de, no máximo, quatro pavimentos. Meu edifício ficava em uma rua interna, entre a praia e a Lagoa Rodrigo de Freitas. Essa mudança não representou uma mera troca de endereço. Ela foi um marco na vida da minha família.

Para minha mãe, deve ter sido um período bem amargo porque o cordão umbilical que a ligava aos seus parentes foi rompido de uma hora para outra. Ela que os via quase todos os dias, passou a viver longe, e como nessa ocasião não havia telefone em nossa casa, ela ficava sem notícias por muitas semanas.

Quanto ao meu pai, foi justamente o contrário. Ele sempre havia sonhado em morar perto da praia. Logo fez amizade com uma turma do vôlei e em pouco tempo, estava jogando muito bem.

Na nova residência eu cresci, fiz amigos, e me apaixonei pela praia, pois até então era um universo totalmente desconhecido. Como era bonito ver as ondas quebrando na areia! O mar estava sempre diferente. Às vezes azul, outras, verde. Ora parecia um espelho d’água, ora estava de ressaca. E o que dizer do voo das gaivotas, dando grandes mergulhos para encontrar os peixes! Era todo um mundo novo que se descortinava bem diante dos meus olhos. Foi lá que vi pela primeira vez um tatuí – um crustáceo - e um siri daqueles branquinhos. Também encontrei belas conchas de todos os tamanhos e cores. Descobri que na areia, perto da calçada, havia uma vegetação rasteira que ficava coberta com flores roxas, na parte da manhã. Era muito lindo! Um certo dia, enquanto meu pai jogava uma partida, peguei uma peneira e um baldinho, e com mais dois amigos, mais ou menos da mesma idade, saímos colhendo as flores. Como o jogo estava emocionante e a bola custava a cair, meu pai não percebeu de pronto que eu havia me afastado. No entanto, quando ele se preparava para sacar, deu uma olhada de soslaio para a barraca onde eu costumava ficar sentada brincando, e não me viu. Olhou em volta, e nada. O pai das outras duas crianças – um menino e sua irmã - também deu por falta dos filhos. Todos ficaram surpresos porque havíamos sumido em questão de minutos. Os jogadores, então, começaram a procurar no mar, na calçada... Meu pai teve a ideia de perguntar às pessoas que estavam ali por perto, se haviam visto três crianças andando. Foi quando uma senhora disse que havia observado duas meninas e um menino, colhendo flores em direção ao Leblon. Meu pai saiu em desabalada corrida seguido pelo pai das crianças. Quando eles nos alcançaram, já estávamos quase a um quarteirão de distância. Fiquei sem ver minhas flores roxinhas por um bom tempo porque meu pai me botou de castigo. Para minha tristeza, aquela vegetação sumiu com o passar dos anos, porém como a natureza é sábia, a prefeitura acabou entendendo que aquela cobertura vegetal não tinha só uma função estética. Aquela planta era a solução para evitar que a areia invadisse o calçadão e os prédios da orla em dias de vento forte. As flores voltaram!

Nem tudo, no entanto, foi agradável nessa nova moradia. Lembro-me de que os invernos eram muito frios e chuvosos. Teve um deles que foi simplesmente aterrorizante para mim. Um dia, ao acordar cedo para ir à escola, ouvi um uivo tenebroso que vinha da cozinha. Eu não sabia identificar o quê ou quem estava fazendo aquele barulho. Embora estivesse apavorada, tive que tomar meu café ali. Comi com os olhos arregalados enquanto minha mãe me explicava que se tratava apenas do vento. Nunca esqueci a sensação de medo e desconforto. Até hoje, quando ouço o vento batendo na janela, fico arrepiada.

Em contrapartida, esse mesmo inverno me deu a oportunidade de conhecer o que é cheiro de terra molhada. Nos fundos do meu edifício existia uma área com um jardim, e era lá que minha mãe me ensinava o nome de algumas plantas e flores. Uma tarde, quando estávamos vendo as primeiras rosas da estação, começou a chover. Minha mãe não arredou pé, pois tinha algo em mente. Dali a pouco, ela me perguntou se eu estava sentindo um aroma diferente, e foi então que me mostrou a terra úmida, e falou sobre a importância da chuva. Ainda hoje esse odor me faz ficar nostálgica, pois tenho saudade daqueles dias em que minha mãe me abria os olhos para o mundo.

Nas férias, além de brincar no prédio, na pracinha ou na praia, eu também tinha outras atribuições. Tinha que aprender a pregar botão, fazer ponto de cruz e até mesmo cozinhar. Dentre todas as receitas que mamãe tentou me ensinar, a que eu mais gostava era a da empada. Eu simplesmente adorava misturar, com as mãos, os ingredientes da massa. Era como se estivesse brincando de massinha de modelar. Além disso, quando as empadas saíam do forno, ficava difícil dizer qual a mais gostosa, a de camarão ou a de queijo de minas? Eram todas de dar água na boca! Pena que apesar dos esforços da minha genitora, continuo avessa à culinária, mas verdade seja dita, ainda faço questão de amassar e forrar as forminhas das deliciosas empadas que minha filha faz. Ela teve a quem puxar.

Benditos sejam os cinco sentidos que nos brindam com momentos únicos do passado, e que servem para confirmar o dito popular: “Recordar é viver.”

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 21/04/2015
Reeditado em 21/04/2015
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