Você me bagunça (EC)
Você me bagunça – a voz da ‘Fêmea no Divã’ (Parte última)
‘Primeiro você me azucrina, me entorta a cabeça
me bota na boca um gosto amargo de fel,
Depois vem chorando desculpas, assim meio pedindo
Querendo ganhar um bocado de mel... ’
Ana Clara foi pega de surpresa ao ouvir essa canção, enquanto descansava no assento do ônibus – na ida à escola, naquele primeiro dia em que se redescobrira mais viva, feliz até. E começou a fazer planos e esperar.
No final de semana, comprara algumas roupas novas, umas peças mais modernas, mais sensuais. Aproveitou e comprou sapatos, sandálias e bolsas, fazia tempo que não se importava com essas coisas. E esperava.
Esperava uma ligação do F.G, como ela passou a chamá-lo. Nunca mais esqueceu o celular em casa e a todo instante ela olhava para aquele display, rezava diante dele, se arrumava diante dele, fazia suas refeições diante dele e o levava ao banho, o cúmulo do despautério!
No outro final de semana, foi ao cabeleireiro e pela primeira vez alisou os fios, escolheu uma tonalidade mais clara – um louro dourado - e, puxa, não precisava, fez um mega hair. E continuava esperando.
Semana passada, foi ao cinema, assistiu ‘Loucas pra casar’, adorou o filme, até conseguiu dar boas risadas. No dia seguinte, levou os filhos para uma Feira de Livros; no finzinho da tarde, pizzaria. Ela fez com que o tempo passasse, verdade, se divertindo com as crianças, mas continuava esperando.
Na semana seguinte, comprou caixas de chocolate, se pôs diante da TV e assistiu, na sessão da tarde, “Como se fosse a primeira vez”, chorou; depois, foi a vez do último capítulo da novelinha ‘Boogie Oogie’, chorou mais uma vez; depois, a xaropada da novela ‘Alto Astral’, chorou; depois, o absurdo da novela ‘Império’, era pra chorar mesmo; e no telecine, que azar, ‘Amor além da vida’, filme ótimo com Robim Williams, inesquecível, Cuba Gooding Jr e Annabella Sciorra, dessa vez, nós compreendemos, o choro valia muito a pena. Uma ansiedade louca tomou conta das noites e dos dias da Aninha. Ela chorava calada, inquieta, confusa, mas continuava esperando.
No trabalho, os colegas não a reconheciam, às vezes, faltava sem justificativa alguma. E quando estava em sala de aula parecia distante, seus alunos percebiam a tristeza, a falta de ânimo da professora até que, no meio da tarde, de ontem, Ana Clara foi tomada por um impulso e abandonou àquela escola, seus alunos, seus livros.
Uma hora depois, chegou ao consultório do Dr. Gikovate, nem percebeu algumas mudanças na pintura e móveis. Não falou com a recepcionista, a senhora antipática de olhos pequenos. Adentrou o consultório, ignorou a paciente sentada sobre o divã e disse:
- Por que... Por que, Flávio Gikovate, você há cinco semanas me ligou e não retornou mais?
_ *!?*!?*!?*!?*!?*!?
O Dr. Gikovate tomou um susto, não sabia o que dizer e, sem compreender aquela atitude intempestiva de sua ex-paciente, quase não a reconhecera, balbuciou:
_ Ana Clara... não sei do que você está falando...mas, há poucos dias, pedi a D. Rosa que ligasse para alguns pacientes para atualização de dados cadastrais, talvez....
Ana Clara ficou, primeiro, muda, depois, pálida e, em seguida, enfurecida. Saiu do consultório, batendo a porta que ficou entreaberta e permitiu que todos ali pudessem ouvir seu desabafo.
- Você me bagunça, Dr. Você me bagunça!
Este texto faz parte do Exercício Criativo – Você me bagunça. Saiba mais, conheça os outros textos: http://encantodasletras.50webs.com/vocemebagunga.htm