Humanos

Fazia muito frio naquele dia. A rua suspirava calada e o silêncio da noite insistia em responder com assobios incompreensíveis. No bairro não havia muitos bares, aliás, não existiam pontos comerciais notáveis, a não ser uma lanchonete mal instalada e um bar no final da rua. Os fios ultrapassavam os limites daquele quadrado de ferro envelhecido da lanchonete e causavam um aspecto horrível nas mediações onde se instalara, obstruía a calçada, os pedestres não reclamavam, o mendigo – negro, pobre e bem formado – usava, todas as noites, o toldo de teto e o chão de cama.

Jogado ao chão disforme, com paralelepípedos repletos de falhas no concreto, o corpo de um negro de mais ou menos um metro e setenta, enrolado numa coberta velha e imunda, sem demonstrar movimentos respiratórios. Por baixo do pobre homem, jornais locais e nacionais de dias atrás. Manchetes incríveis anunciando o sucesso econômico do Brasil no exterior e as expectativas positivas dos investidores estrangeiros. Outro jornal anunciava investimentos pesados para realização da Copa do Mundo de 2014 e as dificuldades para evitar a corrupção.

Naquelas horas da madrugada não há movimento humano nas ruas, os carros passam esporadicamente. Bêbados passam em alta velocidade na intenção de mostrar sua masculinidade a alguma vadia no interior do veículo. O corpo descansa em paz no seu leito público. Não é capaz de sentir frio, de sentir dor, de sentir sofrimento. Todas as dores sentidas há dias anteriores - pela situação precária a qual foi posto depois de perder seu emprego – foram anuladas pela estagnação cerebral em que foi colocado coercitivamente pela sua própria fortuna. Agora, no seu descanso merecido, suas mãos se juntam ao peito congelando, essa é a última imagem que seu destino registrou. Uma última tentativa de lutar contra seus infortúnios. Na boca não se decifra se há um leve sorriso labial ou uma triste mágoa.

Sua imagem sugeria uma possível ressurreição, não parecia morto, parecia dormir. Os membros inferiores e superiores em suas rigidezes cadavéricas pareciam estar no lugar onde almejavam. Imóveis, estáticos, sem vida. Onde ele estava prostrado era possível ouvir o som vindo do bar no final da rua. Tanta vida, perto da morte. Dava-se para ouvir copos se quebrando e o cantar de pneus do carro ou moto de algum imbecil. Os carrões saiam do bar com tanta velocidade que ao passarem na frente do leito de descanso faziam ventar um vento seco na fronte do negro, mexia o cobertor como se fosse um vento natural. A natureza estava de luto, até a lua se escondia por trás das nuvens; as formigas, os besouros, as mariposas se recusavam a fazer suas danças desconexas. Até a luz no poste sobre ele se queimou. Os sentimentos que faltavam à república laica, sobravam na noite preta, silenciosa e respeitosa.

Nosso “querido” afrodescendente não acordará quando o sol amanhecer, lutando contra a noite gelada. Não assistirá os noticiários pela manhã anunciando os milhões de reais que os bancos públicos e privados lucraram no último semestre, tampouco verá o governo federal anunciar investimentos para evitar a falência de bancos e seguradoras. Não terá oportunidade de acompanhar o âncora anunciar a pequena queda na venda de veículos novos. Perderá aquela notícia interessante da festa de arromba dada por aquele jogador de futebol milionário na sua mansão com valor expresso em seis dígitos. Ele perderá tantas notícias, tantas piadas, deixará de chorar todos os dias.

Talvez, o sono eterno seja a melhor das opções para um corpo humano desprezado e uma alma desvalorizada. Um corpo abandonado pela sua cor e pelo seu contracheque. Quantos outros gostariam de dormir tão profundamente quanto ele, só para não ter que assistir mais a TV, só para não ouvir mais os rádios e nem acessar a Internet. Com os olhos fechados e coração parado não há possibilidade de ser chamado de ermitão ou antissocial. Com a máquina humana desligada se evitam as fadigas cotidianas, se evitam as músicas chatas e, felizmente, não se pode assistir as injustiças de um povo que violenta seus pares, renega seus iguais.

Renato W Lima
Enviado por Renato W Lima em 09/03/2015
Código do texto: T5164423
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