Jogar pedra ou pavimentar o caminho?
 
       Ilma fez aborto há uns trinta anos. Nunca se perdoou por tê-lo feito. Passou anos olhando crianças que provavelmente teriam a idade do filho ou filha que não viu nascer e crescer. Chorava amargurada e arrependida. Era casada – ainda. Mas estava separada havia anos. Fruto de uma relação que não renderia outros frutos nenhum. Desempregada, com filho pequeno para criar, sem nenhuma perspectiva de futuro para os dois, quanto mais três! Não se preveniu? Gostou de fazer? Joguemos pedra na Geni, quer dizer, na Ilma!
     Rafaela tinha dezenove anos e duas filhas. Engravidou do vizinho casado. Ele pagou o aborto. Ela foi aconselhada na escola onde estudava. Não faça isso. Então, dê a criança. Mas, não faça isso. Fez. Joguemos pedra na Rafaela.
         Priscila engravidou aos dezesseis anos. O pai dela pagou o aborto. Engravidou novamente aos dezessete e teve o filho. E, depois, outro filho, de outro relacionamento. Não adiantou nada, não é, pai da Priscila? Vamos jogar pedra nela também!
          Beatriz estava grávida. Não queria. A barriguinha já estava despontando. De repente, apareceu na escola “sem” barriga. Nunca estivera grávida, segundo ela. E joguemos mais pedra!
          Maria teve três filhos. Um de cada pai. Veja só, que vergonha! Joguemos três pedras na Maria, não importa se não abortou. É mesmo uma sem-vergonha!
        Perla teve sete filhos. Casada com o mesmo marido. Pobre. Absurdo ter tantos filhos sem poder sustentar! Ninguém viu que tentava fazer a tal da laqueadura desde o quarto filho. Joguemos pedras na Perla por trazer tanto filho ao mundo. Que mulher inconsequente! Joguemos sete pedras!

          Joguemos pedras nas mulheres que abortam. Mas, não joguemos pedras nos pais que abandonam seus filhos dentro delas. Nas mulheres que não tomam remédio, nem se previnem. Mas, não nos homens que não usam camisinha nem assumem a paternidade. Nas mulheres que têm um monte de filhos sem planejar! Mas não nos sistema que não atua na prevenção.
          Joguemos pedras naquelas que ficam “fazendo” um monte de filhos por aí. Não importam suas histórias, não importa se eu não faço a mínima ideia do que vivem. Joguemos pedras.
          Joguemos pedras e posemos com nossas barrigas lindas de frutos desejados ou desejáveis nas redes sociais. Joguemos pedras, nós com um ou dois filhos, às vezes três, todos lindos e bem alimentados. Façamos campanha contra o aborto. A favor da vida. A favor de deixar nascer. Como se isso por si só desse conta da discussão que é muito mais profunda e complexa.
           Joguemos pedras porque é mais fácil nos abaixarmos para pegá-las do que tentar erguer a discussão e a ação para um patamar mais elevado.
 
          Primeiro, não posso me esquecer de baixar meu dedo em riste ou minha mão cheia de pedras. Quem sou eu para julgar? Quem somos nós para atirarmos a primeira pedra?
          E, então, também não posso achar que essa discussão rasa sobre a legalização do aborto fará realmente com que as mulheres pobres não morram em mesas de açougueiro, como alguns textos bem-intencionados quiseram me fazer crer. Diziam eles que com dinheiro, pode-se fazer aborto, mas, sem dinheiro, as mulheres morrem em clínicas clandestinas. Como se o sistema público de saúde fosse exemplar para garantir o “direito” do aborto de quem decidir não prosseguir com uma gravidez. Experimentemos marcar uma consulta a qualquer especialista e esperar meses para conseguir, finalmente, um médico que nos atenda. Será assim tão simples que as mulheres pobres terão direito a interromper a gestação só porque o aborto será legalizado? Será que não vão conseguir consulta apenas quando já estiverem no oitavo ou nono mês de sua gravidez?
          Mas, isso não é levantado nas discussões. Nem precisamos, por ora, talvez.
          Nem posso esquecer de dizer aos que levantam a bandeira do não aborto acerca do quão fácil é ver crescer em seu ventre uma vida desejada, amada – mesmo que seja apenas pela gestante. Imaginem, mães defensoras da vida, ter em seu ventre um fruto de um estupro? Imagine carregar nove meses a crescente lembrança de momentos que você desejaria ardentemente arrancar de sua memória? Para esses casos, pelos quais gostaria que mulher nenhuma precisasse vivenciar, o aborto já é legal, vão alegar alguns. E vão dizer que a campanha é para as outras...
          Por outro lado, também não posso achar incrível a frase que se espalha por aí dizendo que o corpo é meu e ponto. Faço dele o que quiser. É uma frase tão fraca que me espantei de ver pessoas bem educadas do meu círculo social repetindo-a como se fosse argumento fortíssimo a favor do aborto.
          Se assim for, temos que dar direito ao corpo do outro também, não é mesmo? Até que ponto o corpo do feto me pertence só porque está no meu corpo? Até que ponto não é apenas uma frase egoísta e impensada? Ora, responderia eu: faça o que quiser com o seu corpo, desde que mantenha intacto o outro corpo que está abrigado aí dentro.
          Por mais piegas que possa parecer, sim, sou contra o aborto. Entretanto, sou ainda mais a favor da vida. Sou a favor do livre-arbítrio de cada um. E a liberdade de escolha só pode vir quando se rompem as barreiras da ignorância.
          Assim, creio que a discussão sobre ser contra ou a favor do aborto está ainda muito na superfície, para não dizer ultrapassada. Discutimos as mesmas coisas que eu já escrevia em minhas redações escolares, seguindo aquelas orientações padronizadas e pobres sobre escrever acerca de temas polêmicos: introduza o assunto, escreva um parágrafo sobre os prós, outro sobre os contras e encerre o texto com outro parágrafo conclusivo.
          Que possamos dar mais passos. Que ensinemos mais, conscientizemos de fato, falemos mais sobre a sexualidade e menos de sexualização dentro de nossas casas, nas escolas, nas ruas. Que sejamos menos hipócritas e falsos puritanos.
          Trabalho com adolescentes e falar sobre pílula e preservativo ainda é tabu em muitos lares. Muitas mães preferem acreditar que suas filhas são virgens a marcar uma consulta com elas no ginecologista e pedir que receitem um anticoncepcional. Uma conhecida chegou a jogar a cartela de remédios que a filha de quinze anos tomava às escondidas, porque ela era jovem demais para isso. Isso não impediu, claro, que a jovem transasse e, finalmente, engravidasse. Conheço assim, ó, de famílias, que nunca conversaram com seus filhos sobre prevenção. Não apenas prevenção de gravidez, mas de doenças também. As conversas são fragmentadas, com coisas que os adolescentes pescam de frases veladas que, muitas vezes, escapam sem que os adultos percebam.
          Muitos jovens aprendem sobre sexo com seus colegas tão ignorantes quanto eles mesmos. E, além disso, ainda recai sobre a mulher a tarefa de se prevenir, como se ela fizesse um filho sozinha. Isso reduz a chance de prevenção pela metade, já que são necessários dois para que haja a concepção.
          Os abortos feitos de formas mais inseguras foram aqueles para as mulheres mais pobres e com menos instrução. Repito. Só se pode ter liberdade de escolha se tiver rompido o véu da ignorância.  Muitas dessas mulheres, realmente desconhecem sobre educação sexual e métodos contraceptivos diversos. Como realmente podem escolher? Creio que “ninguém” é a favor do aborto pura e simplesmente. Então, menos fotos de barrigas de fora e mais ação para que possamos agir no foco da questão: educação sexual (a qual, deixemos claro, não significa educação para o ato sexual, como muitos ainda acreditam!).
          Parem de seguir modinhas sem pensar. No seu grupo do Facebook provavelmente não tem tanta adolescente – e lembro que a média de idade é de 21 anos para o primeiro aborto. Isso é a média. Sabemos que várias adolescentes de quinze ou dezesseis anos lotam esses “hospitais”.
          Você está postando fotos suas para amigas da rede social que também não abortaram. Ou que nunca vão te contar que o fizeram. E não, você não está contribuindo para um aumento na qualidade da discussão e ação preventiva.
          Ao postar a foto grávida, você só está atirando pedras nas Genis, ao invés de pavimentar seus caminhos. Jogar pedras sem dar-lhes mais informação, educação, melhores condições sociais e respeito é mais fácil. É necessário, depois de pavimentar o caminho, ainda assim, respeitar suas decisões. Afinal, esse é o verdadeiro significado de livre-arbítrio: deixar que as pessoas façam suas próprias escolhas.

Sugiro a leitura de um estudo interessante, publicado no site da Fiocruz: AQUI 
Solimar Silva
Enviado por Solimar Silva em 20/02/2015
Reeditado em 08/05/2020
Código do texto: T5143464
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