Infância

- Dona Izabel, corre que pegaram a menina! Era um tal de corre aqui corre ali e a garotinha só se lembra de ser pega pela mão preocupada da "Doiê" e ser levada para dentro de casa. Doiê reclamava, falava, gesticulava, repreendia, e a pequena não conseguia entender direito o que acontecia. Nem o que houvera acontecido antes. Porque eles a pegaram. "Doiê" era como todos os netos, chamavam a avó Iza. A garotinha se lembra, na sua tenra idade, de ter acontecido isso umas duas vezes. Todos os adultos da família sabiam que tinham que ter muito cuidado ela, mas, vez ou outra, um descuido, e os primos a pegavam perto das bananeiras que existiam nos fundos das casas. Só se lembra de que a deitavam, e um por um, se chacoalhavam em cima de dela. Hoje, tem certeza, nem eles sabiam direito o que estavam fazendo. Faziam, provavelmente, o que haviam visto de soslaio. Eram nove irmãos, só uma menina, a penúltima, e que na época, ainda nem havia nascido. E eles que eram uns cinco. Moravam numa casa de dois cômodos. Quarto e cozinha. E o casal não parava e fazer filhos. Provavelmente nem paravam de brincar de fazer filhos. Tanto que tiveram mais quatro. Os irmãos da pequena eram uma mocinha oito anos mais velha e um moço dezesseis anos mais velho, que provavelmente estavam muito mais preocupados com suas vidas de pré e pós adolescentes. Nessa altura, já devia ter um irmão bebê, mas ela não se lembra muito claramente. Então, molecada, criançada, eram os primos, filhos da tia A, os cinco já citados, e mais dois, os filhos do tio Z, e ela, a única menina. E mais ainda os três filhos dum casal amigo da família, o Seu An e sua mulher. Era uma criançada linda, barulhenta e arteira. Pensando nisso, ela agora acaba de descobrir porque, mesmo depois de adulta, sempre teve predileção por conviver com amigos homens. E também porque nunca foi muito dada a brincadeiras de menina, com bonecas. A primeira boneca, aquela que marcou mesmo, ela a ganhou quando tinha já oito anos de idade. Ganhou-a de presente porque passou de ano em primeiro lugar. Sua primeira infância foi assim nesse ambiente. De tudo, o que mais se lembra é dos cuidados da "Doiê". De manhã, além do café, Doiê fazia um chá e o esfriava dum jeito único para oferecer às crianças. Era incrível ver aquela imagem. Duas canecas, uma vazia e a outra cheia de chá quente, fumaçando. Ela passava o líquido quente de uma caneca para a outra abrindo uma distância tão grande, que bastava umas duas ou três trocas de uma caneca para outra e o chá ou o café ficavam no ponto de aquecimento perfeito para as crianças tomarem sem queimar as suas bocas. A meninada toda tomava café/chá da manhã na casa dela. E ela esfriava o chá para todos, um por um, sentada ao lado da mesa, parecendo uma Nha Benta, quando parava pra contar história.

Eles tinham de tudo o que uma criançada pode querer para crescer bem, com liberdade. O tio Z era o tio rico da família. As casas todas eram dele. Umas quatro, todas vizinhas e muito espaço entre elas. "Doie" era o xodó dele e tinha de tudo ali. Fogão a gás e fogão a lenha. Plantas, árvores frutíferas e criação de animais. Pé de amora, pé de limão, pé de ameixa, o bananal, muitos pés de banana. As crianças tinham um pouco de medo de ir lá no bananal, diziam que lá tinha cobra.

Mas os adultos não podiam descuidar, senão os meninos iam lá e pegavam a menina.

Tinha criação de porco, cabra, pato, galinha, cachorro, gato. Tinha de tudo que criança gosta. A gurizada vivia trepada nos pés de amora saboreando-as ali mesmo no pé. Toda tarde tinha limonada. Pegavam os limões ali mesmo no pé e, geralmente era a mãe que fazia limonada para todos. O leite que tomavam era de cabra, aquelas criadas lá mesmo no quintal. A pequena ainda se lembra de, em mais ou menos uns dois Natais, ter ouvido os guinchos do leitão sendo morto para a ceia. E ela não gostava de ver. Se sentia perturbada com aquilo. Não entendia muito porque tinha que ser assim. A Doiê tinha um cachorro chamado Cacique e outro chamado Leão. A pequena sentia que eles cuidavam dela, das crianças todas. Tinha um amor especial por um deles. Chorou quando o Cacique morreu atropelado na Fernão Dias. A morada deles era bem próxima da Fernão Dias e tinham a tia "C" que morava do outro lado da rodovia. Sempre iam lá. Muitas vezes escondido da "Doiê". E o Cacique sempre os acompanhava. Atravessar a rodovia era um perigo ao qual não se furtavam. Um dia, quando ela não estava presente, ele morreu atropelado na travessia da rodovia. E assim, lá se foi a pequena experimentar uma das primeiras perdas doloridas no aprendizado da vida. Do Leão se lembra pouco dele. O mais marcante sobre o Leão é que, próximo de onde moravam, havia uma casa onde no muro havia duas estátuas de leões, uma de frente para outra, em cima das pilastras do portão. Ela tinha medo daqueles Leões e não entendia porque o "nosso" cachorro também era Leão. Só se lembra dele algumas vezes, ele os acompanhando com o Cacique, mas não se apegou tanto a ele. Associava-o às estátuas dos Leões da casa lá das proximidades. Nem sabe direito do fim do Leão. Talvez já não estivesse mais por lá quando ele se foi.