UM BRASILEIRO EM PASSO FUNDO

Era o dia no qual a igreja católica comemorava o São Sebastião, aproximava-se o fim de janeiro, portanto em pleno verão no hemisfério sul. Parti rumo à capital do estado com o objetivo de alçar voo às terras gaúchas. Quase oito horas de ônibus chacoalhante até Goiânia. Dormi por lá mesmo. Dia seguinte, bem cedinho, estava eu no aeroporto disposto a iniciar verdadeira maratona aérea. Após três decolagens e três consequentes aterrissagens, já ao cair da tarde, coloquei meus pés no chão de Passo Fundo, a “Capital Nacional da Literatura” ou “Lugar de Ser Feliz”, como é conhecida a cidade. Eu cheguei, mas minha bagagem não.

Apesar de já ter visitado ou morado em dois terços dos estados brasileiros, nunca tive a oportunidade de conhecer qualquer cidade sul-rio-grandense. Era a primeira vez. E olha que já fui casado com uma gaúcha, com quem tenho um casal de filhos lindo e maravilhoso. Logo na chegada, aquela constatação desagradável: minha mala havia se extraviado. Essas malas com espírito aventureiro são terríveis. Que péssimo início de primeira vez!

Por mais simpática e cortês que tenha sido a funcionária, de uniforme azul, que me atendeu no balcão da companhia aérea, era impraticável manter o bom humor naquela situação. Após dois dias de viagem, não ter, pelo menos, uma cueca limpa para vestir ao fim do banho era inconcebível. Cambada de incompetentes e irresponsáveis! As bagagens recebem, no momento do check-in, tarjas identificadoras de seu destino final. Deixar que elas se extraviem é comparável ao cirurgião que esquece uma tesoura dentro do abdômen de um pobre coitado que acabou de ter seu apêndice retirado. Embora o resultado da negligência médica possa ceifar uma vida, o desvio de uma bagagem acarreta transtornos para a vítima, o infeliz passageiro, tão inaceitáveis quanto a morte fora do script. Faz-se urgente que a legislação brasileira seja mais rigorosa e promova punições realmente significativas às empresas de transporte coletivo, sejam elas aéreas, terrestres, marítimas ou fluviais, quando causarem esse desconforto aos seus usuários. Multas e indenizações mais substanciais constituiriam-se na forma da sociedade se defender desse desrespeito absurdo ao consumidor. Para não ser deselegante, nem citarei o nome da ignóbil empresa aérea que permitiu o desvio de minha mala. Porém se o leitor desejar, facilmente saberá, porque, sem querer, querendo, já mencionei o dito cujo, neste parágrafo.

Depois de instaurar um inquérito administrativo para localizar minha mala aventureira, atravessei a porta e, na calçada, constatei que não existiam táxis aguardando os passageiros no seu desembarque. Tive de esperar quase vinte minutos para aparecer um. No caminho até o hotel, mais uma surpresa. Percebi que o motorista não parava quando pedestres ousavam colocar seus pés na faixa a eles destinada para atravessar a rua. Reparei também que esse comportamento era idêntico aos dos outros veículos. Não era o chofer que me conduzia o único a infringir a lei. Todos os motoristas a desrespeitavam. Pareceu-me paradoxal. Apesar do contratempo inicial, já havia captado que os cidadãos locais eram bem acolhedores e extremamente educados. Por que motivo, no trânsito, tal educação deixava a desejar? Não consegui conter um comentário a respeito do modo de dirigir dos motoristas passo-fundenses. A resposta foi imediata: “Se a gente parar, o trânsito não anda!”.

No dia seguinte, vivenciei mais de perto essa realidade. Fui atravessar uma rua, em pleno centro comercial de Passo Fundo. Olhei com bastante atenção. Nenhum veículo se aproximava. Comecei a caminhar sobre a faixa pintada com listras brancas no asfalto negro. Já havia superado mais da metade do trajeto quando um automóvel prateado virou a esquina para entrar na rua em que me encontrava. Graças à curva, sua velocidade era pouca, mas ele precisou diminuir mais para não atropelar-me. O motorista, visivelmente irritado, dirigiu-me, aos gritos, três ou quatro palavras meio confusas. Só entendi “babaca”. As outras, creio se tratar de genuíno gauchês. Felizmente, meu vocabulário ainda era pobre nesse simpático idioma. A prefeitura local precisa promover uma campanha educativa para que os motoristas empreguem somente palavras de ampla utilização nacional ao admoestarem aqueles pedestres idiotas. Se continuarem a utilizar termos de sua língua nativa, os pedestres turistas e idiotas não conseguirão se sentir devidamente xingados.

Voltando à noite de minha chegada. O táxi deixou-me na porta do hotel. Beleza! O motorista nem precisou me ajudar a carregar as malas. A empresa aérea havia se incumbido de evitar esse esforço excessivo ao nobre profissional. Instalei-me no quarto já reservado. Instalei-me? Como? Sem roupas limpas, sem sabonete, sem desodorante, sem barbeador, isso corresponde a se instalar? Desci e perguntei à recepcionista como faria para chegar a um shopping. Sujo, suado, fedendo e exasperado, segui as orientações. Era perto. Apenas três quarteirões de caminhada. Adquiri os produtos de higiene necessários, duas camisas e duas cuecas. Gostei dos preços. Pela qualidade das roupas, seriam mais caras nas cidades onde costumo fazer compras. Dirigi-me para a praça de alimentação. Um letreiro luminoso de certa loja oferecia “Frango Atropelado”. É isso mesmo que vocês leram: “Frango Atropelado”! Imaginei algo parecido com o velho frango a passarinho. Não resisti à curiosidade, indaguei da atendente se eram a mesma coisa. Ela explicou-me que tinham também frango a passarinho no cardápio, mas o “Frango Atropelado” era muito melhor. Mostrou-me o cardápio com as belas fotos das refeições. Eu poderia escolher o molho e alguns acompanhamentos. Assim o fiz. Magnífico! Delicioso! Tratava-se de um filé de frango grelhado, entretanto a forma de chapá-lo, certamente, foi diferente do que conhecia até então. De fato, ele parecia ter sido “atropelado” por uma carreta carregada com várias toneladas. E todos os pneus da carreta deveriam ter passado sobre o pobre bichinho. O filé era fininho e macio. Valeu a pena!

O mais interessante ocorreu na hora de pagar a conta. A funcionária do caixa me informou que o preço total, juntando a comida e o refrigerante, era de “dezoito com cinquenta”. Tomei um susto! Dezoito com cinquenta são sessenta e oito. Não era possível que fosse tão cara aquela refeição. Em outros locais, pagaria cerca de trinta reais. Ainda atônito, repeti as palavras da moça: “Dezoito com cinquenta, mesmo?”. Ela confirmou: “Dezoito com cinquenta.”. Pensei comigo: “Que idiota eu fui. Deveria ter olhado o preço no cardápio antes de fazer o pedido. Agora, não adianta reclamar.”. Enfiei a mão no bolso e peguei uma nota de cinquenta e outra de vinte reais. Entreguei-as a moça do caixa. Ato contínuo, ela devolveu-me a de cinquenta. Depois, tirou duas moedas da gaveta da caixa registradora e me entregou junto com o cupom fiscal. Olhei para as duas moedas, fiz as contas e perguntei: “Então, são dezoito reais e cinquenta centavos?”. Pela sua cara, creio que ela julgou-me um tanto limitado, mas foi paciente e respondeu: “Isso! Dezoito pilas com cinquenta centavos.”. Entendi tudo. A moeda circulante em Passo Fundo é o pila. Mas os brasileiros não precisam ficar preocupados com o câmbio. O real, nossa moeda, é automaticamente convertido em pila, na proporção de um para um. Entendi também que lá naquele país de onde vim, o Brasil, todo mundo tem o equivocado hábito de falar errado o preço das mercadorias. Dizem: “Dezoito e cinquenta.”. Somente por aqui falam corretamente: “Dezoito com cinquenta.”. Saborear um frango atropelado pagando apenas dezoito com cinquenta não tem preço!

Fiquei tão feliz por ter conhecido uma nova moeda, o pila, e por ter aprendido aquele pequeno detalhe do dialeto local que, ao passar por outra loja onde se vendiam camisas, comprei mais três. Retornei ao hotel preparado para banhar-me, barbear-me e perfumar-me. Realizei as operações de higiene pessoal tão almejadas e atirei-me na confortável cama para relaxar. Acabei adormecendo, mas já passava das vinte e duas horas. Nada mais natural. Repentinamente, fui acordado pelo toque do telefone celular. Atendi e ouvi uma voz suave e bem treinada que, inicialmente, quis saber se era eu mesmo. Após a confirmação, gentilmente, declarou: “Sua mala foi encontrada. Ela estava em Campinas. Acabou de chegar. Nós a entregaremos aí no hotel onde o senhor se encontra hospedado”. Conferi o relógio: meia-noite!

Pelo que pude perceber durante os poucos dias que passei na cidade, ela tornou-se um centro irradiador de cultura. Muitas faculdades lá estão instaladas e vários cursos e treinamentos são oferecidos. Também encontramos diversas clínicas especializadas e hospitais. Justamente, o que me levou a enfrentar as peripécias descritas foi a participação em um treinamento que julguei enriquecedor para minha vida profissional. Instalações nota mil! Instrutores ótimos! Assuntos de alta relevância! O coffee-break um tanto calórico em demasia, contudo não tirou o brilho do evento. Entretanto, algo me chamou a atenção. Numa plateia de empresários e executivos, a cuia rolava solta durante as apresentações. Entre um slide e outro, até os instrutores davam suas bicadas. Estou falando da cuia de chimarrão. Claro que me veio à memória os velhos shows de rock, onde o baseado passava de boca em boca, como o cachimbo da paz. Guardadas as devidas proporções, as imagens eram idênticas. Só que estávamos num treinamento de alto nível acerca de e-commerce. Não imaginava que o hábito de sorver a infusão de mate, amarga e quente, fosse tão arraigado a ponto de adentrar nas salas de aula, durante o desenrolar das palestras e demais atividades didáticas.

Almoçar e jantar em Passo Fundo são momentos bem agradáveis. De um modo geral, a comida é de ótima qualidade e saborosa, independente do aspecto dos restaurantes. Desde os mais simples aos mais luxuosos. O preço também é convidativo. Come-se bem por menos de dez reais. Desculpem-me, dez pilas. Encontrei alguns restaurantes self-service, nos quais a refeição custava nove com noventa. Fato curioso é que, nos finais de semana e feriados, eles aumentam os preços. Sobem em torno de cinquenta por cento. Mesmo assim, ainda permanecem mais baratos do que os similares brasileiros.

Chegou o dia de regressar. Minha mala estava abarrotada. Não foi possível acomodar as roupas novas e os demais apetrechos adquiridos. Solução: precisei comprar outra mala. Vejam quantos inconvenientes foram ocasionados pela incompetência dos funcionários da companhia aérea. Imaginem se meu orçamento estivesse apertado e eu não dispusesse de recursos suficientes naquele momento. Quando cheguei ao balcão para fazer o check-in fui logo reclamando. Sei que a pobre moça que me atendeu não tinha a menor culpa do acontecido, mas ela representava a empresa diante de mim. E a moça, ouvindo meu desabafo, foi bastante eficiente. Lascou uma tarja de cor abóbora resplandecente em minha bagagem, na qual estava escrito: “PRIORITY”. Creio que minhas malas devem ter sido trazidas sobre um pedestal, no compartimento de carga da aeronave. Desta vez, chegaram sem aborrecimentos.

Em suma, Passo Fundo é um país maravilhoso. Tem algumas diferenças marcantes em relação à cultura predominante na maior parte do território brasileiro, mas isso o torna mais atraente ainda. Tenho certeza de que um traço que necessita ser aprimorado é a educação dos motoristas. Caso eles consigam se comportar da mesma forma que agem quando estão fora de seus veículos, lá será o destino ideal para muitos passeios, não só turísticos, como também de negócios, aprendizado e tratamento de saúde. Desejo que vençam esse obstáculo cultural!