MEUS ANJOS E A ESTRELA ELIS

Penso que ouvi o cântico de um anjo, quando nasci. Aliás, tenho indefectível certeza disso. Notas suaves, certamente. Ele, Anjo Eterno, cantou e permaneceu comigo.

Outros anjos andam à minha volta, entoando notas celestiais. Confesso, entre mim e eles, há e constantemente houve plena harmonia, agrada-me tudo que cantam. Ouço-os, desde sempre, enternecida.

Lembro-me da voz afinada de minha mãe que cantava pedalando a máquina de costura. Eu, menina, deitada no assoalho, vendo aqueles pés que iam e vinham no pedal, afinava em meu peito os acordes da infância. Enquanto ela cantava, ao som de sua voz, eu viajava nas asas da borboleta. “Vai, oh, gentil borboleta, vieste me atormentar, vieste trazer-me a lembrança de quem não quero lembrar” ... E minha imaginação, embalada pela voz de minha mãe, voava no vai-e-vem que costurava a vida. Eu ia e voltava com a gentil borboleta. Minha mãe era um anjo, que descobri mais tarde.

Joaninha, minha irmã, também me embalou com sua voz angelical. Lembro-me de suas canções entoadas dentro de casa e em nosso quintal, clamando por algum amor que, porventura, houvesse partido. Enquanto eu tentava entender a dor contida naquela voz, subiam notas musicais pelo vento e se espalhavam no espaço: “Ya no estás más a mi lado corazón/ En el alma solo tengo soledad / Y si ya no puedo verte / Por qué Dios me hizo quererte / Para hacerme sufrir más?” Ela era um anjo enfeitando o quintal de minha infância, eu soube depois.

Tia Dolores espantava suas dores batendo, cantando, as roupas na tábua de lavar, perguntando triste e insistentemente com maviosa voz: “¿donde estará mi vida, / Por que no viene?/ Que rosita encendera / Me lo entretiene...” Anjo doce, que me amava e enfeitava as mulheres no vaivém do pedal da máquina de costura também. Era sorridente, riso largo, rosto bonito.

Ouvindo aquelas canções, criança da curiosidade aguçada, perguntava a mim mesma se o amor era só aquilo: saudade e dor. Luiz Gonzaga um dia me respondeu que saudade faz roer e amarga que nem jiló. Preocupou-me a resposta do anjo Gonzagão, embora jiló seja de um amargo gostosinho, com arroz e feijão.

Meu pai era um anjo que cantava com sua voz grave, como convém à história narrada na música flamenca e me ensinou a sentir no sangue o tremor da guitarra de Andaluzia, quando solava El Imigrante... “yo soy un pobre imigrante,/ que vengo hasta tierra estraña...

“ Me tienes que echar de menos”.

Vez por outra, em língua portuguesa, ele também me encantava, imitando Carlos Galhardo e ensinando-me cantigas de amor: “O nosso amor traduzia/ felicidade e afeição,/ suprema glória que um dia/ tive ao alcance da mão...”

Lembro-me tão bem de quando ele me chamou ao pé do rádio, sentado na varanda à noite, com o cigarro de palha aceso e me disse: ”preste atenção na letra dessa música, ouça e veja que bonita é!” Fiquei quietinha, para ouvir a canção que dizia: “Olho a rosa na janela, sonho um sonho pequenino, se eu pudesse ser menino, eu roubava essa rosa e entregava todo prosa à primeira namorada e, nesse pouco ou quase nada, eu diria o meu amor...”

Naquela mesma noite, o locutor anunciou outra canção, que nós dois ouvimos e, ao final, o pai me disse: ”interessante, a vida é assim mesmo, a música está certa:” “eu era feliz e não sabia”. Ouvimos juntos “Meus Tempos de Criança”! “eu igual a toda meninada, quanta travessura que eu fazia, jogo de botões sobre a calçada, eu era feliz e não sabia.”

Aquela noite na varanda, ouvindo rádio, eternizou-se em minha memória. Eu era feliz e não sabia.

Assim, conduziram-me harpas e acordes que me adormeciam e me acordavam de maneira a me embevecer e em tudo ver motivos para cantar. Sim, antes que me esqueça, eles já se foram, timbram e modulam no céu de todos os amores. Eu, com toda certeza que me permite a fé, sei que cantam ainda para mim. Eles... entre outros que me são simpáticos. Felizmente, descobri, aos poucos, que o amor traz maravilhas também.

Na adolescência, outras vozes me encantaram e ao som delas dancei enlevada e ouvi serenatas. As serestas varavam minha janela e faziam com que meus olhos grudassem em longínquas estrelas.

Dentre elas, a de mais linda voz brilha no céu dos encantados.

Descobri que Fascinação era linda na voz de Galhardo, como me ensinava meu anjo pai, mas para mim, ninguém a cantou como Elis. E assim foi em Transversal do Tempo, (1978) quando “a palavra mais constante em ‘que-país-é-este’ era PER-PLE-XI-DA-DE”. Em 1977, exultei com Romaria e nada calou mais fundo em mim que o disco Falso Brilhante de 1976.

Lembro-me quando chorei sentada na cozinha de minha casa, ouvindo a interpretação estonteante de “Atrás da Porta” na voz Elis Regina, disco que eu acabara de adquirir. E vieram “Como nossos pais” e “velha roupa colorida”... E... Ai, Elis, ai, Elis!

Não farei comparações, pois aqui elas não cabem.

Digo apenas que continua a estrela brilhando e que esta voz também caminhou comigo, soprando em meus ouvidos os encantos musicais. Aprendi, igualmente, que o amor não significa apenas saudade e dor, porque dele muitas alegrias surgiram em minha vida, são constantes e permanecem. E canto, porque cantar faz bem e os anjos ensinaram-me isso.

Nada mais me resta a não ser fazer uso das palavras inscritas na capa do disco Trem Azul Elis, editado em 1982, após a partida da estrela: “Aí estou, pelo salão, pelas casas, pelas cidades, parecida comigo. Um rascunho. Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra. Como uma estrela. Agora eu sou uma estrela.”

Sim, Elis, Agora você é uma estrela. E meus Anjos, ah os meus anjos...

Dalva Molina Mansano

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Acessos em 20.01.12

Publicado em: 19/01/2012 23:23:18

REPUBLICADO EM 19.01.2015

18:42

Dalva Molina Mansano
Enviado por Dalva Molina Mansano em 19/01/2015
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