O vestígio de vento que soprou na contrição

 
Sobrepujou a modorra e norteou-se ao escritório. Na esfumada noite anterior, quando se recolheu em seus aposentos, babatou as paredes até encontrar o leito. Entrementes, um comezinho repelão no comutador trazia alvura ao recinto. A luminescência, que minguara durante a madrugada, devido ao ominoso clima encoberto, restabelecera-se.

Aquebrantara, pela enésima vez, o plácito que fizera a si próprio de não mais conduzir azáfamas à casa. Estava diante de um impasse: conceder ou não a liminar. Tantas vidas seriam afetadas por sua propensão... E ele vira aquela garotinha no colo da mãe...

Cavilação parecia-lhe habitar feérico condomínio, situado num ínclito bairro da maior metrópole da América Latina, onde assistiam unicamente magistrados, como ele, e, também assim, poder observar, num franco currupiar da cerviz, a noventa graus, à hiperbólica faina, por conta da caligem que lhe embaçava a vista, pardieiros inextricáveis.

Afeito a imputar ordens utilizando apenas uma caneta e um papel, acalentava o seu ego com a sensação de ser o braço do criador. Era fácil. Um guia de jurisprudências, uma contenda litigiosa e o seu humor diário. Eis os ingredientes que o regiam.

Entretanto, naquela ansa, era diferente. Não bradaria, através de despachos redigidos, seus consuetudinários veredictos, do firmamento. Sentia-se mais um cirurgião que um juiz de direito. Era como se em suas palmas estivessem os apetrechos e bem na sua face os órgãos vitais.

Da mesma cabeça embotada, que volteara para lobrigar a fenestra, sairia o aforismo acerca das existências que povoavam as choupanas enegrecidas pela bruma. Fazia frio e isso interferia nos seus sentidos. Com o perfunctório deslizar da pena sobre a lauda, ele mandaria seres humanos ao relento, despojaria, embargaria sonhos, desiludiria párvulos, sublevaria imberbes com seus caracteres ainda em formação. Desta feita, antagônico ao contumaz, seria kafkesco deslindar. A cerração lá de fora confundia-se com a densa neblina endógena.

Esquivando de ilharga o soez vezo de delegar aos fâmulos o encargo de mercar as tibornas, enroupou-se com o balandrau polvilhado e foi à tasca. No curto percurso, pisou o granizo despejado das nuvens no decorrer do dilúculo. Em meio à cacimba, um maltrapilho, prostrado em torrão gélido, parecia não tirar os olhos toldados do que convizinhava um periódico. Ao apropinquar-se, atinou tratar-se de uma resma empapada, contendo scripts líricos que grafava.

O vislumbre de soslaio do eremita tolheu-o. Entrevado, quedou-se inerte, retina à retina, com o vil esmolador que se alçava do plano úmido e calcorreava, rijo, em seu curso. A mão do togado já adentrava a algibeira, buscando vinténs, no tempo em que o galhardo rudimentar estendeu-lhe um chumaço de páginas. Não houve verbos. Afasia. Ao fundo, somente o soído de cigarras em alvoreceres acinzentados. Fração de segundo era aquela que faria morada no âmago do excelentíssimo pelo sobejo de sua duração.

Enjeriu-se e marchou ao singelo itinerário, decifrando o cálamo, perturbado com o vigor da letradura. Nesta sazão, descobriu-se inferior a um homem comedido. Matutou que suas perscrutadas sentenças desvanecer-se-iam com o perpassar dos quartéis e não seriam evocadas pelos que virão depois de nós, enquanto que as lhanas trovas do menoscabado romanesco espurco transporiam o seu decesso.

Retirou as galochas pretas, livrou as botas fumês do aguaceiro, esfregando-as no estofo pardacento da varanda e adentrou sua residência. Ao lançar ao xilema o invólucro de brioches, mirou o borriço que foscava a vidraça e a chaminé que fumegava, assentou-se com os escritos e folheou-os, esquadrinhando a compreensão da conjuntura insólita. A narrativa, burilada por um literato invisual, no estilo homérico, discorria a respeito de um estadista do século XXIV. Este, ao ver-se diante de um portentoso arbitramento a ser proferido, andejou em seu gabinete, quando, de forma repentina, num móvel velho, topou, a esmo, um livro do preambular decênio do nosso centenário corrente.

Sugestionado pelo poeta que o escrevera, o governante cedeu ao seu ímpeto emocional e decidiu não expurgar uma economia intemperada que abalroaria os desvalidos. O texto disposto em versos fê-lo remeter-se a seu modesto exórdio, recordando a intrepidez laboral de seus progenitores para proverem o seu sustento e o de seus irmãos.

Como se fosse remetido a semotos espirais nebulosos que pairam no cosmo, o político pôde presenciar o seu pai, um vigia noturno, em pleno sereno, batendo, ferrenhamente, os pés, no cimento álgido, com o fim de aquecer-se. Foram elocuções que forjaram um estopim. Embora contrariando os interesses obscuros dos possessores, não inflacionou os tributos que incidiam nos principais itens sazonais de inverno da cesta básica. Os módicos desjejuns matinais, sob o viço do orvalho, continuariam regados a cafés com leite quentinhos.

Avariado pela aquosidade que permeara a vintage, os últimos fragmentos embolorados quase não puderam ser lidos. Diligenciou com brio para decifrar a desbotada tinta e poder enxergar o epílogo do compêndio, no qual o editor dispora nota, relatando que publicaria a obra para apaziguar a violência das enxurradas e trovões intelectivos que abatera sua lucidez quando o autor suicidara-se, afogando-se num mar revolto, em virtude do desdém de sua filha por seu apreço casto, oriundo do receio do labéu, em razão da ablepsia do mancebo trovador.

O vaivém tempestuoso tomara conta da alma do julgador e tornara-a mais plúmbea que a opacidade daquele céu turvo de penumbras. Como uma deliberação que deveria ser tão racional podia ser transferida à musa que era filha do editor do poeta cego que persuadira o estadista, que era um personagem criado por um funesto mendigo embebido pelo fluido do negrume? Era como se toda a torrente grelada no lusco-fusco fosse mero conteúdo imaginativo promovido à matéria pelo omnipotente, alicerçado pelos devaneios de um relés mortal que em suas graças caíra.

Regressou à sombra do escrínio, alumiado frugalmente por uma tacanha gambiarra, debruçou-se nos autos processuais e enveredou pelos últimos tique-taques do ínterim crepuscular, implementando o brocardo.

Adormeceu ali mesmo, com o encéfalo castigado pela soturnidade de uma terrífica dubiedade.

Em sua quimera noctâmbula, rememorou a garotinha, estanciada nas vivendas rústicas contíguas, arraigada no esteio do mátrio poder. Seus olhinhos pueris derramavam uma desditosa lágrima que se mesclava com a enevoada chuva lívida daquela chona lúgubre e taciturna.

 
Texto publicado na Revista Cultura no Mundo – Terceira Edição – Novembro de 2014 – Páginas 08, 09 e 10.
 
Marcelo Garbine (Mingau Ácido) – @mingauacido – mingauacido.com.br

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