Ossos do ofício de pais

Bê nunca leu Mia Couto para ter copiado dele a idéia de tirar o esqueleto do corpo para guardar. A propósito, ela nem sabe ler – ainda! Inesgotável a fantasia dos miúdos. Fantasia diminui ao longo dos anos e Bê só tem três e meio. Ela chegou para nós dia desses dizendo que queria tirar os ossos do seu corpinho e guardá-los no armário por um tempo. O pai dela, ao ouvir tal (des-)propósito, tentou uma explicação dizendo que isso não seria possível sem perda de vida, que ossos não se tiram do corpo para guardar, e enquanto ele tentava convencê-la das reais (im-)possibilidades da coisa eu segurava o riso e pensava no flamingo de Couto, o flamingo que voou não só na Mia imaginação, voou longe pintando um quadro de Salvador Dali surgido no fundo das minhas lembranças junto a outros de Miró. Surrealismo não é loucura, é apenas uma forma enviesada de ver, pensei, e sem querer diminuir o valor da explicação do meu esposo, eu disse à Bê que isso seria possível sim, mas só na dimensão mil quinhentos e setenta e três. Atraí o olhar sério do meu marido mas não me intimidei e sugeri que tentássemos desenhar isso e quis saber de onde ela havia tirado uma idéia tão interessante. Ela foi até a sala e voltou com um livro sobre o corpo humano e um esqueleto sorriu para nós. Na página seguinte ele aparecia coberto de músculos e depois de pele, por isso ela deve ter concluído que de quando em vez podemos tirar as camadas para lavar ou quem sabe guardar no armário, como se a pele fosse um grande casaco, o que não deixa de ser verdade aliás... Há dias em que o cansaço da realidade é tanto que eu gostaria de tirar meus ossos, pendurá-los no armário e deixar-me escorrer no chão, qual gelatina... delícia, refrescante sensação...

Nota: texto publicado na minha linha do tempo no Facebook, aqui republicado para quem tomou a sábia decisão de não estar por lá

;-)