INDELÉVEIS LEMBRANÇAS

Nasci às margens de um riacho, ao pé de uma serra, numa casinha humilde, primogênito de um casal de caboclos humildes.

De minha casa até a cidade, sede do município, percorríamos, a pé, uma distância de cinco quilômetros. Raramente íamos durante a semana, mas aos domingos, quando havia missa, não faltávamos.

Minhas mais gratas lembranças vêm daqueles tempos, relacionadas, principalmente, ao que acontecia aos domingos, quando havia missa, o que era sempre um grande acontecimento, para o qual afluía uma multidão de fiéis em suas roupas de gala. Quer dizer, fiéis, nem tanto, porque metade nem entrava na igreja.

Os meios de transporte eram bastante diversificados, folclóricos, até, se transpostos para os dias hoje, porém absolutamente normais para aquele contexto: carroças, aranhas, que depois viraram charretes, carros de boi e de cavalo. Os mais abonados aproveitavam para ostentar seus bonitos e luxuosos carros de mola, tracionados por dois e até por quatro cavalos. Os deserdados da fortuna iam a pé mesmo e estava ótimo.

Aqueles que preferiam permanecer ao lado de fora da igreja, durante o ato religioso, na verdade eram movidos não pelo espírito de religiosidade, mas pelo encontro em si, marcado com antecedência. Era quando acertavam contas, durante as quais saía até tiro; negociavam cavalos, trocavam ideias sobre plantações, combinavam mutirões para o preparo da terra ou para a colheita, tomavam chimarrão e faziam fofocas. Não adiantava o padre chamar, que ninguém atendia. Para eles, o que faziam na rua era mais importante do que aquilo que o pároco dizia lá dentro. O caminho do céu começava era ali mesmo, embaixo das árvores.

Algumas mulheres casadas e outras solteiras ficavam mal faladas nessas ocasiões. Não perdoavam nem a mulher do seu Fulano de Tal, a qual metera um par de chifres no marido; a filha do Sicrano, que fora para a cama, ou para trás da macega com Beltrano e, para calar as línguas ferinas, o pai comprara-lhe um mocorongo, ou tapa-buraco, como o sujeito ficava conhecido. Dessa forma, filhas de pais abastados se livravam da má fama, casavam vestidas de branco, com véu e grinalda, como mandava o figurino e viravam respeitáveis senhoras da sociedade. As pobres não tinham escapatória, eram jogadas na lama e nem entrar na igreja podiam mais.

Enquanto o padre oficiava a missa, do lado de fora, como já disse, acontecia de tudo. Uma das muitas histórias pitorescas de que fui testemunha, é esta:

Tonico era um sujeito rude, temido, valentão mesmo, morador lá da costa da serra. Quando ele resolvia acabar com um baile, ninguém protestava. Se mandava recado para um coitado qualquer encontrar-se com ele, na missa, o convocado não aparecia mais na igreja, mudava até de religião.

Certo dia, porém, apareceu na cidade um sujeito franzino, cuja origem ninguém se preocupou em saber e ele não disse. Gostou do lugar e ficou. Estabeleceu-se, com sua rabeca, animando roda de amigos e encontros festivos. Boa gente, o Rabequeiro, não se metia na vida de ninguém e era bem-visto.

Tonico tinha um cinto largo, desses de vaqueiro, com aquela fivelona enorme. Um dia Tonico mandou intimar o tocador de rabeca, para que não faltasse à missa do próximo domingo, pois resolvera dar-lhe uma surra de cinto. Rabequeiro respondeu ao portador, que em homem não se batia de cinto, dissesse isso a seu patrão e, aparentemente, ficou tranquilo.

A notícia espalhou-se e a expectativa de que Rabequeiro desapareceria antes de domingo não se confirmou.

Tonico chegou cedo, sentou-se à sombra e esperou, apenas para mostrar que era temido, porque tinha certeza de que, àquelas horas, o pobre diabo estaria longe. Enganou-se e, em poucos minutos, constataria que mexera com a pessoa errada.

De repente, ainda perdido em seus pensamentos, Tonico avistou, ao longe, Rabequeiro, que, despreocupadamente, caminhava para o local.

O valentão levantou-se, sob os olhares curiosos da multidão, um tanto decepcionado, pela ousadia do sujeitinho e começou a desafivelar o enorme cinto.

Quando os dois se defrontaram, Tonico levantou o cinto acima da cabeça, como para iniciar o espancamento e ficou com a mão suspensa. Então os espectadores constataram, admirados e incrédulos, que havia um punhal espetado na barriga do fanfarrão.

- Não avisei que em homem não se bate de cinto? Agora vai embora e nunca mais voltes aqui, concluiu calmamente o franzino tocador de rabeca.

Rabequeiro virou herói e Tonico nunca mais apareceu. A igreja da bucólica cidadezinha de minha infância continuou desempenhando seu importante papel social e religioso, exatamente como sempre fizera.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 25/09/2014
Reeditado em 02/10/2020
Código do texto: T4976094
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