SENHAS E SONHOS

Quando eu vim ao mundo, o nome das pessoas é que abria as portas. Muitas vezes bastava o apelido, com um bom dia, uma boa tarde, ou mesmo um abraço, se as portas fossem de um amigo ou vizinho. Depois, para acompanhar o nome, nos deram o CPF, chave para qualquer movimento ou operação. Passou a funcionar como uma segunda alma, sem a qual não somos ninguém fora de casa. E aí, na esteira do CPF, vieram as senhas. Dos bancos, do computador, do telefone, do elevador, da mala e até do papagaio. Um caminhão de senhas e códigos, hoje exigidos para qualquer passo, no mundo real ou virtual. Um “abre-te sésamo” generalizado, sem o qual você regride à Idade das Pedras sem poder entrar nas cavernas.

Tudo muito lógico: isso é o progresso. É a tecnologia a serviço da segurança. Mas o que dizer quando se exige senha até para o sanitário? Pois é, certos estabelecimentos estão fazendo isso. Sem uma consumação mínima in loco, ninguém consegue o “abre-te banheiro”. Se você entra no recinto já em estado de necessidade, você dança, esperneia, faz nas calças, mas aquela portinha salvadora lá no fundo não se abrirá nem que você lhe atire uma bomba. Então, daqui pra frente, melhor sair de casa já de fraldão.

Aí, eu fico pensando (aposentado tem muito tempo pra isso): E se a moda já passou para o além-túmulo? Depois de um exaustivo Juízo Final, que é uma espécie de vestibular para se entrar no céu, você dá de cara com São Pedro, barbas brancas, cajado na mão e voz tonitruante:

- Senha, por favor!

- Desculpe, Santo Guardião (você resistiu ao impulso de tentar alguma intimidade, chamá-lo de Pedroca, perguntar se ele já pescou em Três Marias), desculpe mas Vossa Santidade há de entender...eu morri mais velho (eu e o Niemeyer), memória fraca, mal de Alzheimer, enfim, esqueci a senha.

E ele, impassível: - Você tem direito a três tentativas. Se falhar, vai para o purgatório fazer o recadastramento, Vai enfrentar uma fila que já deu mil voltas na Via Láctea.

Então você tenta uma carteirada ou insinua uma certa familiaridade: - Mas o Senhor não está me reconhecendo? Eu sou o Toninho, de Queluzito, filho do Toniquinho e da Conceição.

Nada acontece. Aí você apela, dá o golpe de misericórdia: - Eu sou o avô do Bernardo e do Felipe!!!

- Ah! O famoso jeitinho brasileiro, hein? Igual ao outro barbudo, que não viu nada, não sabia de nada, nem a senha, e queria entrar assim mesmo. Não deixei. Nunca antes na história do céu...

Nesse momento aproxima-se uma preta sorridente e diz: - Licença, meu branco.

E São Pedro, bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

Depois tenta explicar, meio sem jeito: - É a protegida do Manuel Bandeira. Se eu barrar a moça, perco o emprego.

Pereirinha
Enviado por Pereirinha em 03/09/2014
Reeditado em 18/01/2016
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