Churrasquinho doce
 
Costumo dizer que domingo sem churrasco não é domingo para mim. Por isso muita gente pensa que eu sou um exímio churrasqueiro e que entendo tudo de carne. Puro engano.
 
Também não sei se sou o pior churrasqueiro do mundo, mas, com absoluta certeza, sou o mais teimoso. Não desisto nunca e, através de décadas de espeto, grelha e carvão, já errei muito e acertei algumas vezes. E até fiz churrasco só para mim, quando toda a família estava na praia e eu desfrutava da minha adorável companhia em casa.
 
Certa feita um sobrinho me convocou para assar uma costela a fim de comemorar o aniversário dele. Metido, não recusei o convite. Encomendei no açougue de confiança pontas de primeira. No dia da festa, um sábado bonito de maio, eu e o aniversariante madrugamos no clube, onde ele havia reservado a maior e mais aprazível churrasqueira.
 
Com tudo à mão, iniciei o ato de assar conforme a liturgia do bom churrasco - costela, no caso. Brasido no jeito, altura correta dos espetos em relação ao calor, paciência e muita paciência. Nada de pinga nem cerveja. Aguenta, peão, até a hora de servir. Dribla a vontade com água e café.
 
Tudo ia muito bem. Braseiro mantido, a gordura da carne pingando no ritmo certo sobre as brasas, o povo chegando, aniversariante feliz. Mulheres falando de televisão, receitas e bordados de um lado, homens contando piadas do outro, criançada divertindo-se no parquinho.
 
Faltando mais ou menos hora e meia para iniciar o serviço do almoço, a minha mulher chegou com o meu filho ainda guri, depois de uma breve escala no Shopping Mueller, para uma rápida comprinha. Ela desceu do carro e fez sinal para que eu fosse até lá. Obedeci.
 
Barbaridade, que cena chocante! O nosso principal carro, novinho em folha, reluzente, com o capô todo riscado.
 
Neurótico desde o nascimento, não suporto ver objetos de estimação danificados, quanto mais um automóvel recém-saído da fábrica. Perco o juízo.
 
Naquele instante a costelada acabou. Tratei de apressar o cozimento e devo ter contaminado a carne com a minha ira. Pois é, tem disso. Pode acreditar. Cozinheiros e churrasqueiros transmitem para a comida o estado de espírito e humor do momento.
 
Creio que nenhum dos comensais, até então, experimentara costela tão dura. Daquelas para não se esquecer nunca do churrasqueiro.
 
Em outra ocasião fui ao mercadinho do bairro, num domingo de manhã, comprar carne para o churrasco do almoço. O açougueiro, já conhecido, caprichou na escolha da peça e no corte dos filés, também chamados de T-Bones pela turma adepta da finesse do estrangeirismo sem pudor, ou chuletas, por aqueles que não se importam se a palavra é feia ou bonita. São os tais filés com osso em forma de T, que de um lado têm o mignon e do outro o contrafilé. Aqui na região sempre foram muito usados nos churrascos das festas de igreja, temperados na véspera com sal, pimenta, cebola, alho, louro, água e tudo o mais que se desejar, com direito a segredinhos para valorizar o resultado. São o que eu chamo de “churasco” de polaco.
 
Com os filés bem cortados, passei entre as prateleiras do mercadinho e apanhei um pacote de sal grosso apressadamente. Lembrei-me, ao sair, que o meu cunhado, ainda solteiro e morando perto dali, estava sozinho em casa porque os meus sogros tinham viajado. Então, para fazer uma gentileza, passei na casa dele e o carreguei para o nosso churrasco domingueiro.
 
Preparei o fogo com o capricho de sempre. Deitei umas linguiças sobre a grelha. Preparei as caipirinhas, porque ninguém é de ferro, e mais tarde salpiquei o sal comprado sobre os filés e coloquei-os na companhia das linguiças. Desta vez nada de “churasco” de polaco. Apenas sal, para sentir o real gosto da carne, pois aqueles filés mereciam.

Estranhei, sem no entanto me preocupar, que o sal tinha derretido completamente, não sobrando o tradicional excesso para descartar. Assim,  bati a carne de um lado e de outro contra a grelha com o auxílio do garfo de cabo comprido apenas para cumprir o ritual.
 
Tudo assado, sentamo-nos à mesa. Tentando ser educado, permiti que o meu cunhado se servisse primeiro e, com aquela vaidade de que fala o Eclesiastes, aguardei pacientemente a aprovação e o elogio.
 
Porém, a cara do convidado não fazia jus à qualidade esperada dos maravilhosos filés. Não aguentando o silêncio dele, perguntei se estava bom.
 
- Está doce.
 
- Doce? Garanto que coloquei sal suficiente.
 
- Eu não disse pouco sal. Está doce, experimente.
 
Minha mulher e meu filho confirmaram. Tomei coragem e provei. De fato estava doce. Levantei-me da mesa e corri para ver a embalagem plástica do sal grosso. Não acreditei no que estava escrito em letras razoáveis, para que míope nenhum alegasse não enxergar. Por isso li mais umas duas ou três vezes e depois levei um pouquinho do produto à língua com a ponta do indicador. Com a comprovação inconteste através do paladar, teimei em ler de novo: açúcar cristal.
 
Obviamente não deu para comer os doces filés daquele domingo longínquo. Aliás, nem o cachorro comeu.


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N. do A. - Na ilustração, Churrasco em Família de Flávio Sholles (Rio Grande do Sul, 1950).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 05/08/2014
Reeditado em 26/05/2021
Código do texto: T4910265
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