Crónica do Fumador

Um frio dos diabos e atravesso a cidade. Carfax Tower, olho o relógio – há tempo para fumar antes do quarto de milha até Queen´s Lane. Chego-me ao banco encostado à parede contígua ao café brasileiro no coração de Oxford

(café brasileiro no coração de Oxford?)

enquanto ouço todas as línguas a serem faladas nesta esquina do mundo e sento-me nas costas do banco, ou na parte do banco que serve para encostar as costas, tanto faz. Saco do tabaco. Saco da mortalha, do filtro. Olho à volta. Todo o tempo é cinza. As pessoas, cinza também. O pavimento do passeio, todo o cruzamento da High Street com St. Aldates desde Queen’s Street, a desembocadura da luxuriante Corn Market St., palco ao ar livre da cidade medieval, é de uma cinza mais cinza que a que me cai agora do cigarro que degusto em subtil lânguidez público-contemplativa. Detenho-me nos rostos de quem passa – rostos de todo o mundo. Rostos mais jovens que velhos, mas rostos de todas as idades, todos diferentes,

(raios, o café brasileiro tem à porta uma bandeira nacional)

muitos morenos, e penso que é Verão no hemisfério Sul, muitos curiosos, uns confusos, perdidos na imensidão de rostos balançantes, querem ver, querem chegar, querem saber, querem encontrar, muitos, normalmente os asiáticos, querem comprar – não importa o quê, comprar – e todos, todos querem fotografar.

Gosto sempre de imaginar os trajectos atribulados dos rostos da rua, tentar perceber pelas expressões os estados de espíritos, a pressa ou falta dela, a felicidade ou falta dela.

Lanço o olhar a Queen’s St. – vem a subir o pastor da Igreja Baptista com templo situado mais abaixo em Bonn Square. Costuma situar-se na zona do Westgate ou ali mesmo de frente para St. Aldates. Distribui «good mornings» sorridentes e flyers com informação do horário dos serviços da igreja. Noto as expressões dos inquiridos. Em Oxford, existem coimas para quem atirar flyers na via pública tanto para quem recebe como para quem entrega. Por isso, cada flyer entregue tem de ser na confiança de que não será atirado na esquina mais próxima ou que depois de uma vista de olhos rápida, vá pelo menos parar ao seguinte recicling bin fora da vista do pastor, por uma questão de delicadeza, um qualquer respeito mesquinho que qualquer inglês tem intrínseco. Muitos rostos ignoram indiferentes o benfazejo cumprimento do pastor – os olhos parados, visando o caminho que seguem sem nada verem; muitos outros, pelo tal respeito-mesquinho que dizia: «thanks, I’m fine», que é como quem diz: «não quero saber dessa porcaria»; outros rostos sorriem de volta, complacentes mas não aceitam o dito papelito; outros ainda param, conversam, sorriem muito durante o diálogo, trocam rápidas idéias baptismais, imagino.

(que dirão os ultra-nacionalistas britânicos de tal demonstração de nacionalimo na porta do café? sentir-se-ão ultrajados na medida em que a sua Union Jack é que deveria estar em todo o lado – como está no topo dos edifícios, em roupas e em calçado?)

E o pastor leva todos os dias todos aqueles rostos para casa. Penso no que faz com eles à noite. Se os despeja num baú grande e velho e os esquece até ao dia seguinte. Até que os veja de novo, lhes sorria de novo e de novo lhe passem vazios ao lado. Penso se rezará pelos rostos, se rezará para que todos se baptizem, para que tenham menos pressa, menos rugas, menos respeito mesquinho. Que faz uma pessoa aos rostos todos os dias? Mais: que faz um pastor baptista ao rostos de todos os dias? Terá sonhos em que banha rostos em baptismo metafísico? E rezarão depois, juntos?

(que digo eu, os tipos até têm guarda-chuvas com a Union Jack!)

Depois não penso nada disso e volto decidida à minha condição de não-crente. Espezinho a ponta do cigarro antes de me embrenhar na multidão do mundo. Que se fodam as coimas.

Maria Fernandes

MariaFernandes
Enviado por MariaFernandes em 25/07/2014
Código do texto: T4896006
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