O violão dos meninos
 
           Meu violão! Esta lua está tão clara
           e este céu tão sereno e tão bonito,
           que eu vejo o coração de Deus pulsando

                   nas artérias azuis lá do infinito.
                                                      Catullo da Paixão Cearense

     1. Vou, mais uma vez, começar minha crônica, citando Machado de Assis. Pergunto: para justificar meus escritos, às vezes ou sempre nada atraentes ou asneira pura? Talvez. Mas vamos lá. Em Memorial de Aires, escreveu o Bruxo do Cosme Velho: "Não há pior que a gente vadia -, ou aposentada que é mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste."
     2. Gente vadia, "ou aposentada que é a mesma coisa". Por essa classificação do Machado, como aposentado, já ha muitos anos, sou um vadio. Isso não me aflige e nem me ofende. Faço jus a esta santa vadiagem; é o Otium cum dignitate, como dizia Cícero, na velha Roma.
     3. Optando por escrever, a rigor, fujo do que sobre os inativos do Serviço Público, em belíssima crônica, afirmou o autor de Ressurreição: "Conceber um aposentado sem caixa de rapé é conceber o sol sem luz, o oceano sem água."
     4. Diria até, que se com relação a mim tivesse funcionado essa história de herança, nesta minha provecta idade, já na inatividade funcional, eu estaria curtindo um perfumado tabaco em pó guardado num corrimboque doirado. Meus avós paternos e maternos eram loucos por um rapezinho tirado do melhor fumo que existia lá no sertão do Ceará. E quantos espirros sonoros e assustadores em andei ouvindo, eu menino, na casa dos pais de meus pais...
     5. Mas como escolhi matar o tempo escrevendo, ao invés de cheirar rapé, divirto-me, não com o tabaco, mas com o teclado do meu computador, incansável e disponível quando o convido para me ajudar a contar estórias verdadeiras ou inventadas. Trato-o com carinho para que, ao final, ele me dê um texto limpo no seu aspecto gráfico, ficando por minha conta e risco os erros que de repente firam a Gramática.
     6. Muito bem. Aqui, no prédio vizinho ao meu (quanta coisa acontece no seu derredor!) dois rapazinhos, reunidos em volta de uma pequena mesa com algumas latinhas de cerveja, danam-se a tocar violão, sempre à boquinha da noite dos sábados. Tocam e cantam até um pouco mais de dez da noite. Cantam mal, mas é contagiante a alegria que eles, sem saber, mandam para este seu vizinho que, da janela do seu gabinete, ouve-lhes a cantoria, aplaudindo-a  silenciosamente.
     7. Eles cantam músicas que nada têm a ver com os chorosos violões de antigas eras. E nem podia ser diferente. Costumo dizer, que o violão nasceu para cantar, acompanhar ou mitigar nossas dores de corno. Esse não é o violão dos meninos, meus vizinhos. É o violão do tempo deles. Amigos, aquela aterradora dor de corno que antigamente maltratava o coração apaixonado, não existe mais.
     8. Oh! Como tenho saudade dos violões seresteiros; dos violões apaixonados; dos violões boêmios! O progresso avassalador que toma conta das cidades, pequenas e grandes, calou, creio que definitivamente, os bordões e as primas dos "violões em serenatas", como dizia o Noel Rosa. Mas  ainda tenho dúvidas se as madrugadas não sentem falta deles.
     9. E por falar em Noel, trago, de dois famosos cantores, verdadeiras e comoventes declarações de amor ao violão. Nelson Gonçalves, na canção Violão: "Violão, companheiro dileto/ És meu único afeto/ Tudo o que me restou./ Meu violão, meu amigo,/ Nem ela nos separou, / Hoje eu amargo contigo/ A saudade que ela deixou."
     10. O Silvio Caldas, na canção Meu Companheiro : "Meu companheiro dileto, violão/ És meu afeto, é minha consolação./ De tanto roçar meu peito/ tens hoje o timbre perfeito/ da voz do meu coração."
Ainda o Caboclinho Querido, agora, em A voz do violão: "Porém, neste abandono interminável/ no anseio de tão negra solidão, / eu tenho um companheiro inseparável,/ na voz do meu plangente violão."

     11. Qualquer hora dessas, eu vou descer e procurar os dois jovens que enchem de música o crepúsculo pardacento dos meus sábados, dedilhando livremente seus violões modernos. Depois de lhes falar um pouco sobre o violão antigo, romântico, confidente (violão de Dilermando Reis, de Catullo da Paixão Cearense, dois exemplos)  confessarei minha descomunal frustração por não ter nunca tirado um único acorde desse instrumento de sonoridade inigualável. 
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 05/07/2014
Reeditado em 06/07/2014
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