QUERO MORRER NO VERÃO (EC)

Quero morrer no Verão!

Não sei se é melhor ou pior que em outras Estações.

Não tenho essa referência, pois ainda não conversei com ninguém que tenha morrido em qualquer Estação.

Mas algo me diz que morrer no Verão é mais leve.

Verão é alegria...

Natal... Carnaval... Fantasias... Roupagens minúsculas de bronzeadas na praia...

Quero morrer no Verão depois do Natal...

Depois do Réveillon também...

Detestaria estragar o período... Ser uma lembrança triste à época das festas... Já bastam as depressões humanas nesse período de reflexões e promessas.

Quero morrer após as festas, mas de repente... Sem ninguém contando os dias que me restem, sem qualquer parente trocando presentes, pensando em presentes melhores para o natal seguinte, supondo estar incluído num testamento que menti ter feito.

Quero morrer no Verão, mas não no Carnaval... Deixo essa apoteose aos sambistas.

E, caso seja velado de madrugada, não quero atrapalhar o programa de algum convidado da última hora, que houvesse planejado assistir aos desfiles do Sambódromo.

Imaginaram que chato?

Sentir-se no ar do funéreo ambiente o desejo de verem passistas e rainhas de baterias quase nuas e eu, ali, sem poder vê-las. Por outro lado, proíbo carpideiras.

Quero morrer no Verão, antes de meu aniversário para evitar completar mais um ano na contagem regressiva da Vida.

Se morrer aos sessenta e nove (ou setenta e nove) quase certamente ouvirei as habituais frases consternadas: “Morreu tão jovem... Não tinha nem setenta (ou oitenta)”... Ao passo que morrendo aos setenta (ou oitenta), quase ouvirei palavras habituais de consolo: “É a Vida... Viveu bastante... Estava com mais de setenta (ou oitenta)!”.

Farei ouvidos moucos aos comentários: “Já foi tarde”.

Noves fora, o ideal seria morrer em Janeiro.

A alegria do Carnaval vindouro ajudará esquecerem mais rápido alguma tristeza remanescente.

Quero mesmo morrer no Verão...

Livrar-me-ei da obrigação da única certeza da Vida, depois da morte... Fazer a declaração do Imposto de Renda, no outonal final de Abril... Ao tornar-me Pó, viro Espólio... Também passaria menos raiva de saber que até o final de maio, trabalhava apenas para sustentar o governo.

Um segredinho íntimo: Morrer no calor do Verão será minha vingança... Não imaginam o frio que aquele promissor bebê passou, ao nascer numa tarde garoenta de um quase Inverno. Estava tão bem aquecido.

Quero morrer no Verão para que se possa servir cerveja gelada, ao invés daqueles cafezinhos insossos das antessalas de velórios...

Com muito salgadinho, salame e azeitonas.

Quero morrer no Verão!

O Verão parece-me ser mais apropriado para rir daquelas passagens hilárias ou pitorescas, sempre lembradas nas últimas horas na presença do “de cujus”.

Inverno e Outono são muito sisudos e a Primavera tímida e ingênua para ficar-se contando ”piadinhas” numa hora dessas.

Quero morrer no Verão, apesar de alguns inconvenientes.

Que traje vestir-me-ão?

Estarei indefeso...

Por favor, não me obriguem um terno... Ficarei com calor...

Basta-me uma camiseta polo básica e aquela habitual e surrada calça jeans. Poderia até ser uma bermuda, mas estou com as pernas muito brancas.

Nada de melhor roupa.

As melhores, se houver, dividam ou doem para alguma entidade beneficente.

Ah! Não se esqueçam da recomendação do médico: Idosos são muito susceptíveis a variações de temperatura.

Portanto, se necessário congelarem-me devido ao calor do Verão, não me transfiram da geladeira do necrotério para o crematório muito rapidamente.

Quero morrer no Verão, mas se, por motivo de força maior, não for possível, prometo não reclamar no PROCON, nem no SAC da Vida, pois para esta não há garantias ou prazos de validade previsíveis.

Afinal, a Vida é apenas um breve intervalo que passamos acordados na eternidade sonolenta do Tempo.

Importa ser bem vivida em todas as Estações nas quais passamos.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Morte e Vida

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Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 30/06/2014
Reeditado em 30/06/2014
Código do texto: T4863936
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