O AMOR E OUTRAS DROGAS ( UM DEFUNTO NA RUA )

Quando cheguei o corpo já estava cercado de curiosos , repórteres e policiais . Dois policiais , para ser exato. Alguém havia jogado um cobertor xadrez azul sobre o defunto , deixando os pés descobertos . Pelas botas se tratava de um homem . Lá estava eu , meu primeiro caso . Tinha conseguido esse emprego como repórter criminal nessa revista de segunda . Sem experiencia no trabalho a primeira coisa que fiz foi me informar com um sujeito que não parava de rabiscar no seu caderninho . Segundo ele , o defunto havia sido jogado do vigésimo andar do prédio a frente . Por quem ninguém sabia até o momento . Achei que era bom anotar aquilo , mas não tinha um caderninho nem caneta . Os policias tomavam café preto em copos plásticos sem dar muita bola para o corpo . O trabalho deles , pelo que entendi , era garantir que ninguém levasse o presunto antes dos legistas aparecerem . Segunda feira , sete e meia da manha e isso . Qual seria meu próximo passo ? Conversar com as testemunhas ? Onde estariam elas ? O que devo perguntar ? Talvez seja bom dar um nome ao falecido .

Ei , alguém aqui sabe com ele se chama ?

Samuel

Ricardo

Lúcio

Que se dane , vou chamá-lo de Clark Kent .

Todos os outros repórteres riram . Um deles propôs vasculhar seus bolsos a procura de Kryptonita . Um cão de rua se aproximou e começou a lamber o sangue na calçada .Uma garota com uma câmera achou legal fotografar aquilo . Ela tinha os cabelos azuis e calçava tênis All Stars vermelhos .

Ei , você ai , disse ela , fazendo um gesto com a cabeça para eu sair , esta tampando a luz .

Desculpe .

Bateu varias fotos . Os pelos da boca do cachorrinho ficaram todos sujos com o sangue , e ela bateu uma foto disso também . Os legistas chegaram com suas maletas usando óculos escuros . Eles também bateram fotos , depois tiraram o cobertor xadrez e passaram a mexer nas coisas espalhadas por ali .

Vejam isso , disse um deles, puxando algo do meio da carne com uma pinça , o pobre diabos estava mascando chiclete na hora !

Com outra pinça ele esticou a coisa .

Senti que iria vomitar . Mas que merda , pensei , isso não é serviço pra mim . Tinha essa padaria logo mais onde resolvi tomar algo . Ainda não tinha tomado meu café da manha , e quando atravessava a rua a tal fotografa de cabelos azuis chamou .

Hey , espera ai .

Fiquei parado ali , aguardando o sinal fechar e ela atravessar .

O que ouve ? Quis saber ela .

Você viu o cara esticando o chiclete ? Jesus , eles fazem isso todo dia e ainda dormem !

É o trabalho deles .

Sei .

Me paga um café ?

Tem certeza que não quer bater mais algumas chapas?

Não , já tenho o bastante .

Então , o que você faz ?

Fotografa . E você ?

Um pouco de tudo .

É escritor

Como sabe ?

Li um texto seu na D.S.T .

É bom saber que alguém lê aquilo .

Na padaria ela tomou café e eu suco de laranja . Disse que se chamava Vanessa e tinha um estúdio . A achei um pouco estranha , mas parecia interessante , então quando me pediu uma carona disse que tudo bem .

Mas antes temos de passar num lugar . Preciso ver alguém …

Namorado ?

Acho que não . Provavelmente não , seria impossível.

Dobramos alguns sinais e esquinas para sair de frente a essa farmácia , ao lado dela uma Oficina de Relógios . Tinha uma plaquinha na frente informando que estava aberta . Vanessa bateu na porta de vidro antes de entrar O lugar ficava espremido entre a farmácia e uma academia . O tipo que trabalhava ali era estranho , a barba por fazer e cabelos tipo tigela .Roupas surradas e folgadas . Abriu um sorriso quando a viu , mas quando notou que eu estava junto me fitou dos pés a cabeça .

Toma, disse ela , lhe estendendo um envelope pardo. As fotos da semana passada . Ficaram legais .

Quanto lhe devo ?

Vanessa pensou por um tempo com o dedo no queixo para depois responder .

Boliche , vamos ao boliche semana que vem .

Depois , antes de ouvir a resposta do sujeito quis saber se eu também jogava .

Nunca joguei , mas estaria interessado em ir ? Claro , porque não , no sábado ? Não , sexta .

O cara estranho disse que não iria .

Vou estar ocupado na sexta .

A é , com o que ? Sendo um voyeur ?

O rapaz corou , depois disse que estava ocupado .

Preciso trabalhar , tenho um monte de trabalho …

Deixamos sua Oficina depois que a garota lhe deu um beijo no rosto .

Tudo bem , agora podemos ir para casa , disse ela . Mas que historia de voyeur foi aquela ? Ele é um tarado ?

Vanessa acendeu um cigarro e pediu que eu dobrasse a próxima direita .

Nada , é só meio estranho .

Isso eu notei . Acho que não gostou de mim .

Ele é legal .

Seu perfume doce tomava todo o carro . Seus fios coloridos estavam um pouco secos, mal tratados, talvez por causa da tintura . Usava uma camisa branca dos Ramones com um buraco no sovaco . Tinha uma beleza estranha , descontraída . No carro notei que tinha um olho de cada cor . Castanho e azul . Como pude deixar de notar isso antes ?

Sabe , ele, o cara da Oficina , o coitado não tem muitos amigos . Não é nenhum tarado , mas fica tirando fotos dos outros por ai . Se acha um ladrão de momentos .

Talvez seja apenas louco , falei . O mundo esta cheio deles .

Quem sabe ? Você me parece louco .

Não sou eu quem tem cabelos azuis e fica tirando fotos de gente morta .

Quer saber de uma coisa , talvez seja maluca mesmo . Qual a graça de ser normal ?

Agora você me pegou , eu deveria saber a resposta ?

Se não for maluco , falou ela, rodando o dedo indicador como se fosse uma manivela no lado da cabeça enquanto botava a ponta da língua pra fora. Paramos em frente a essa casa que ela disse ser sua .

Quer entrar ? Tenho vinho , whisky ...você tem drogas ?

Ainda são nove horas ?

* It's Five O'Clock Somewhere …

E ela estava certa . Sua ideia fazia algum sentido . Entramos e nos servimos de vinho . Sua sala era um verdadeiro mini pub .Nas paredes fotos de Elvis e Monroe . No tempo que ficamos ali me mostrou algumas fotos , desenhos , sua coleção de discos ...mas não pudemos ouvir por falta de uma vitrola .

Vamos lá , agora é sua vez , me mostre uma de suas poesias .

Mas eu não tinha nada comigo . Ela insistiu para que escrevesse alguma.

Me deu papel fotográfico e caneta .

Poxa , não da para escrever nessa coisa .

Da sim .

Me entregou seu batom , seu batom era preto .

Você usa isso ?

Escreve , vai .

Então escrevi :

O AMOR E OUTRAS DROGAS

E quanto a drogas me refiro a alucinógenos

Estimulantes

Tudo que vem em caixinhas e saquinhos

Aquilo que te deixa mau na manha seguinte

Tira o sono

Fortes dores

Mas eu gosto

Quem não gosta ?

Picadas , cheiradas , tragadas …

Ilegal e legal

Até que lhe tiram tudo

O amor é mais perigoso

Existem muitas pontes por ai

Dois metros de corda não custa caro

Mas é legal , não ilegal

É romântico morrer por amor

Sofrer

Chorar

Cantar um tango triste

É trite ver aquele cara magro

olhos injetados

Com sua lata , agulha

Nariz assado

Sem fome , com ânsia

Sem sede , na parede

Um quadro

Pintado com merda

Doente

E quem não esta ?

E agora

Chega

* Álbum do Slashsnakepit .1995

02/06/2014

15H08M

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 02/06/2014
Código do texto: T4829650
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