Crônica de uma milagre

Não sou religioso, nunca adotei qualquer expressão de exercício da fé, que não fosse no meu próprio templo, minha alma. Já estive em igrejas católicas, passei por centros espíritas, terreiros de candomblé, cultos evangélicos, a maior parte desse tempo, foi durante a infância acompanhando minha mãe em sua busca apaixonada por Deus (Dona Silvia, sim, é pessoa religiosa). O engraçado, é que nasci com uma percepção muito simples de Deus. Sempre senti sua presença onde quer que eu estivesse. Como carregava essa certeza prematura, não entendia o porquê daquela busca desenfreada de minha mãe. Deus, o nosso Pai, estava lá em nossa casa... Eu o via operar milagres o tempo todo. Ele brincava comigo e meus brinquedos. Até hoje, se quero voltar a ser criança, meu Pai se ajoelha comigo, e fazemos castelos e casas de cartas de baralho, jogamos botão, desmontamos e montamos carrinhos, guerreamos com soldados de chumbo e fortes apaches, só pra podermos no final, chegar ao concílio e às benesses da paz.

Falei do Pai de nós todos, e quero falar também sobre o meu pai, Veríssimo. Sobre Deus, meu pai Veríssimo, eu e um milagre.

Nessa história surgem outros personagens, minha irmã Júnia, dois pintinhos, que se tornaram galos, Tutico e Xexéu, e a nossa cadela, Lassie. Não me lembro mais, como eu e minha irmã ganhamos esses pintinhos, só sei que imediatamente batizamos: Tutico e Xexéu!!! “É fantástica a criatividade da criança, Tutico e Xexéu, de onde vêm esses nomes?” Talvez toda criança em sua imaginação, retorne ao Éden, e sei lá, com uma herança adanística, saia por aí inventando esses nomes tão originais.

Xexéu e Tutico haviam crescido. Xexéu um dia desapareceu (desconfiamos dos vizinhos e de seus almoços de domingo). No final, acho que Xexéu não era galo, já que dos dois, só o Tutico havia se transformado num espécime de verdade, forte, parrudo, de crista bem vermelha e alta, e de esporas tão grandes e afiadas que impunham respeito. A Lassie, uma vira-latas com ascendência pastor, respeitava e amava aquele galo de penas brancas e altivo. Eles dividiam a comida em comunhão, comendo juntos na mesma vasilha. E como eu amava aquele galo, o futebol, e os meus jogos de botão! Sou atleticano!!!

Uma noite, não me lembro as horas, se madrugada, acordei com o choro da Lassie (esquecemos de soltá-la), e o ruído que havia era da corrente, arrastada de um lado para o outro. Corri em direção ao quintal e me assustei, a cena era dantesca. Lassie, havia desprendido a corrente de alguma forma, e Tutico que dormia ao seu lado, foi laçado pelo pescoço. Me pus rápido ao quarto de meu pai, ele já vinha em auxílio. No quintal, Lassie chorava em desespero, pedia socorro, era o seu amigo que sangrava sem parar. Eu já não continha as lágrimas. Meu pai acudia o pedido de Lassie, e me falava brando... Tutico aparentava morto... Quando meu pai conseguiu desatar os vários nós e voltas, que a corrente havia dado ao redor do pescoço do Tutico, trouxe-o para cozinha, à luz. Ele havia perdido muito sangue e ainda sangrava. Lembro como se fosse hoje, faltava um fio para que a degola fosse cumprida. Desesperei novamente e chorei sobre o meu amigo, pedindo ao meu pai que não o deixasse morrer, ele ainda respirava. Meu pai o colocou sob a mesa de canto, sobre um jornal aberto. Teve o cuidado de juntar as duas partes do pescoço, praticamente separadas. Cobriu com um pouco de sal, para o sangue estancar, deitou a mão sobre a ferida, como um santo, e me disse: - Filho, já fiz tudo que era preciso, ele vai ficar bem. Vamos deixar que passe a noite aqui, e amanhã estará melhor. Eu acreditei em meu pai. Me senti em paz e tranqüilo. Meu pai me levou para a cama e dormi logo após.

Na manhã seguinte, corri confiante para encontrar meu amigo. Ele havia melhorado, já tentava se aprumar. Na outra manhã, já estava de pé e não demorou muitos dias, para que logo voltasse a ser o dono do quintal. Meses depois, um dia, procurei Tutico e não achei. Procurei, procurei e procurei. Mexendo algumas tábuas encostadas num canto, sob as madeiras, recolhido, agora não respirava mais. Ele havia partido. Não me lembro o que foi feito do corpo do meu amigo, não importava mais, eu já havia aprendido a reconhecer um milagre, não havia como, ele não poderia sobreviver àquele ferimento, e se recuperar daquela forma...Deus poupou todos nós naquela noite.

Parece que em casa ninguém reparou para isso, só eu, e meu pai, tenho certeza disso. Nunca mais tocamos no assunto.

No nosso quintal, viviam alguns amigos: Tutico... Xexéu... a Lassie... um azulão... um pássaro preto... um sabiá laranjeira, que bicava as orelhas de meu pai...

NOTA: período 2002-2008. Obs: leia na sequência o poema, "Sabiá pródigo" (pag.4).

Cassio Poeta Veloz
Enviado por Cassio Poeta Veloz em 05/05/2014
Reeditado em 14/09/2023
Código do texto: T4795137
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