Homem-homem: espécie em extinção

Alguns comerciais são bem curiosos e se prestam a boas análises. Parecem habitar um lugar confuso, intermediário. De um lado parecem ser apenas uma caricatura escrachada de nossos tipos sociais; de outro, parecem revelar os mais profundos valores (e temores) de nossa sociedade.

O do Old Spice é um caso confesso - pelo menos na parte do caricatura escrachada, seus idealizadores afirmaram em entrevista - e daí sua utilidade para pensarmos naquilo que ele toca: a masculinidade. Segue a transcrição, mas vale fuçar no YouTube e assistir.

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Vocês são os sobreviventes de uma espécie em extinção: o homem homem.

O homem que sabe como incendiar o encontro.

O homem que sempre chega lá, não importa como.

A missão de Old Spice é trazer de volta o orgulho de ser e cheirar como homem.

O futuro da homenidade está em suas mãos.

Chegou Old Spice, o desodorante do homem homem. O único com partículas de cabra-macho. Atenda o chamado, se for homem. (cabra macho)(sim, sim, macho).

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E é isso: o homem homem está em extinção.

O comercial todo exala uma uma silenciosa referência e oposição aos outros homens que não os homem-homem. Homens que o comercial parece reprovar ou, no mínimo, menosprezar. Que homens seriam esses?

Talvez homens metrossexuais, ditos sensíveis e vaidosos. Talvez homens homossexuais. Talvez os transsexuais. É grande o rol dos possíveis homens menosprezados, e a polêmica poderia se estender.

Mas o sujeito derrubando cocos com voadora e abrindo com a mão é só piada, sugerem os autores da campanha. Reforçada então com o acender da vela com um lança-chamas. Piada que depois se torna um pouco hollywoodiana com estátua andante e uma cena de perseguição típica(seguida de explosão, claro). Tudo uma caricatura, piada, ficção, coisas de comerciais que ninguém leva a sério.

Noutra reportagem sobre a campanha publicitária, a palavra irreverência é usada para definir o comercial; e é dito que há carinho, cavalheirismo e sensibilidade no que chama de um novo conceito de homem-homem - daí intencionalmente lançada no Dia Internacional das Mulheres.

Ou seja, apenas uma caricatura escrachada.

Entretanto, se uma piada nunca é gratuita, também não são as caricaturas, e daí a reflexão que tento fazer aqui. Mais que irreverente, o comercial permite pensar algumas questões.

Vários pontos de uma masculinidade tradicional são invocados - o homem solitário mas autônomo(e viril), o homem que protege as mulheres(pois supõe que precisam ser protegidas), o homem que seduz mulheres, o homem das armas e carros e motos(brinquedos típicos e agressivos), o homem da velocidade e da explosão. Até a aparição do barco no final, remetendo ao extenso oceano de liberdades e perigos, tem eco numa das mais caras figuras da masculinidade ocidental: o explorador dos mares.

E se são invocados é porque ainda repercutem, seja nos criadores do comercial, seja no público imaginado para o comercial. Mesmo que exagerados e cômicos, são sintomáticos de algo que ainda existe entre nós e em nós, de algo que ainda paira em nossa sociedade.

Ou seja, isto que é o homem-homem e dá o orgulho de ser e cheirar como homem.

O comercial revela, então, uma conexão ainda existente e ativa com certos valores masculinos. E mais que isso, toca num medo que também ainda repercute em algum lugar dentro de nossa sociedade: de que nossos homens estão perdendo sua homenidade. E como o comercial lembra em tom apocalíptico: O futuro da homenidade está em suas mãos.

Esse medo é antigo. Mais antigo do que o comercial. Mais antigo do que a onda dos metrossexuais. Mais antigo do que a segunda onda feminista nos anos 1960 e suas consequências - pois queimar sutiã assustou muitos homens. Mais antigo que o século XX. Registra-se já no século XVIII um incomodado burburinho sobre uma masculinidade perdendo-se via feminização.

Deste modo, mais do que uma caricatura escrachada, feita só para fazer vender uma marca de desodorante que chega no mercado brasileiro, o comercial tem um potencial analítico, quase didático em sua proposta de fazer algo exagerado e caricato, pois permite pensar criticamente uma certa masculinidade - e pautado nas reportagens citadas, é algo (quase) próximo do que queriam seus idealizadores. Brinca com a ideia do homem fodão e também do medo da extinção do homem fodão.

Porém, há algo problemático aí. O comercial acaba sendo potencialmente reafirmador daquilo que se propôs a ironizar(inclusive pela sutileza da ironia, não muito visível). Sem comentar a exclusão de um rol amplo de homens, como já comentei acima, que se é lúdica é também potencialmente negativa.

Comerciais não são responsáveis pelas mazelas da sociedade. Podem ser até reflexo delas. Por outro lado, também podem reproduzir tais mazelas. Causa e efeito, simultaneamente. Deste modo, a mídia, e aí entra a publicidade, precisa ser responsável pelo que veicula e como veicula. Em tempos de homofobia crescente e da persistente violência urbana masculina(que vitima homens e mulheres), invocar homem-homem, com orgulho de ser e cheirar como homem, reafirmando assim vários dos elementos tradicionais da masculinidade e que já provaram exaustivamente ser distorcíveis e danosos, bem, isso pode ser um tanto inconsequente - mesmo que só para vender desodorantes.

Mais: definir o comercial como irreverente não reduz o potencial negativo assim como contar uma piada racista e dizer que é uma piada irreverente não diminui o racismo expresso e existente. Acaba sendo uma elevação do machismo/racismo.

E agora, pensando melhor no que eu dizia no começo, desconfio que caricatura escrachada e revelação de valores (e temores) profundos podem não fazer aquele lugar confuso, intermediário; podem ser exatamente mesma coisa. E que o diga o homem-homem e sua extinção.