RENATÃO.

Era sobrenatural a maneira como aquele moço tocava seu violão. Como o instrumento falava lindamente sob o deslizar de suas mãos ágeis e enormes. Como aqueles dedos disformes percorriam grandiosos, velozes e extremamente sutis pelo braço estreito do instrumento. Como seduzia os ouvidos de todo povo. Como tecia sonhos, como alimentava espíritos, como coloria almas, como harmonizava vidas. Entregue aos domínios de suas carícias, aquele bojo rechonchudo, de curvas femininas perfeitas, correspondia aos seus acortis e se entregava sem pudor, feito uma afável cortesã. Gemia alto, delirava em prazer melodioso, em movimentos de sons suaves, envolventes, emocionados, espantosos, sublimes. O negro Renatão nunca teve professor. Aprendera sozinho, esmiuçando, vasculhando, mergulhando, se entregando no mais resoluto ato de conquista à sua misteriosa amada, sua rainha música, dela também tornou-se rei. Trocava o sono pelo som, tocava o corpo frágil do instrumento com leveza e entrega. Como se acariciasse de fato a dona do seu amor. Seduzia-a na conquista, pelas desoras sem fim de tantas madrugas, amando, se encantando inebriado. Adquiriu a perfeição, desvendou os segredos intransponíveis das melodias celestes. Recebera como prêmio do criador, mãos de arcanjo. Onde aterrissava com seu talento vindo do além, tinha festa. Para onde voasse, carregava nas doces asas de seu instrumento todo o povo. Povo dependente de sua arte, embriagado pelo surrealismo de seus acordes, dopado pelo ópio de sua inestimável musicalidade. O que se cantasse, acompanhava com precisão Divinal. Qualquer nota, qualquer tempo, qualquer ritmo, qualquer estilo, qualquer canção. Chegou ao ponto de receber inumeros convites para tocar com diversos artistas famosos da música brasileira. Mas optara por tocar apenas para o seu povo pobre

da favela, anestesiando sobremaneira as suas dores, em troca de uma dose generosa de cachaça, um copo de cerveja gelada, um prato qualquer de tira-gosto. Uma noite, durante uma festa de aniversário num barraco na favela, surgiu de repente uma batida da Polícia Militar. O sargento ordenou que parassem imediatamente com aquele som. O negro Renatão não se fez de rogado. Baixou seu violão entre as pernas. Com uma das mãos bebia um enorme gole de cachaça, saboreava um prato generoso de petiscos, gesticulava em conversas banais com o povo presente, enquanto a outra mão executava uma música extraordináriamente difícil. O soldado procurou saber de que rádio vinha aquele som desobediente. Ao perceber a performance mirabolante e sobrenatural do negro, paralisou-se e benzeu-se arrepiado por um calafrio súbito. Realmente, aquilo era coisa do outro mundo, algo muito além da compreensão humana. A tropa de policiais seduzida por seu som hipnótico, o aplaudiu eufórica. Em seguida, pediram desculpas aos

convidados, cumprimentaram entusiasmadamente o negro Renatão. Entraram em suas viaturas e partiram ainda enfeitiçados, boquiabertos, admirados com a artimanha do músico empírico. Foram baixar seus espíritos noutro terreiro, para a alegria e gargalhada de todo povo na grande festa do pequeno barraco. Houve um tempo em que suas saídas se tornaram bem mais freqüentes. Quem o ouvia tocar, ajudava a espalhar ainda mais sua adorável fama de músico sobre-humano. Numa dessas andanças o negro desapareceu de vez. Renatão recebera um convite irrecusável para deixar sua favela, seu povo, seu país. O amante e padroeiro das noitadas de sarais e serestas da favela se foi. Partiu aquele rei banto da música rica e nobre, de junto de seus súditos humildes e pobres. Feito um daomeano, um Gangazumba, um Zumbi, extraído de seu habitat natural, levado contra suas próprias forças, por novos e desconhecidos mares. A tocar seu violão extraordinário em

outras línguas, outras culturas, outros continentes. O certo é que o negro Renatão nunca mais voltou. Nunca mais mandou sequer notícias. Sua falta deixou a favela bem menos alegre, menos melódica, menos rítmica, menos harmônica. Hoje seu som é uma ponta fina de lembrança nas mentes e corações de um povo antigo que lhe ouvira tocar, que lhe acompanhou pelas noites de festas sem fim, nos bares e quintais pobres da comunidade. Como um velho santo, cuja história se perde no desenfreio perpétuo do tempo, assim se torna a cada dia a saga musical do negro Renatão, paladino de um som milagreiro, extraordinário. Mas onde quer que ele esteja, com certeza sofre do incrível mal da saudade, causado pela abstinência, pela privação à sua gente pobre, apaixonada por seu toque magistral, que pagava sua genialidade com cerveja, cachaça e tira-gostos. O negro Renatão está agora do outro lado do planeta, com o pensamento voltado pra sua gente simples da favela, parada no tempo, encravada, pulsando vivaz em seu coração de músico tristonho. E se o negro Renatão não manda notícias, é para não receber notícias, para não agravar ainda mais seu mal de saudade. E se não volta pra favela, é para não ter que morrer de uma vez, definhado de dor de banzo, em uma nova e irremediável partida, a bordo de sua nau negreira, rumo aos mistérios inevitáveis de um novo mundo.