Nossa Senhora, eu e Bob

Passeávamos Sônia, eu e bob. Era um sábado. Maio de 2003. Faltava uma semana, para o nosso filhote completar 11 meses de vida. Caminhávamos pela rua do poeta Belmiro Braga. Passávamos enfrente a esse pet-shop, que havia sido, há não muito tempo inaugurado, em lugar de minha locadora de vídeo-games, o Clubinho do game. Sônia e eu, lembrávamos que já era tempo de atualizar as aplicações periódicas, dos agentes contra pulgas e carrapatos, e a troca da coleira repelente ao mosquito da leishmaniose, do Bob. Entramos à loja. Como de costume, o Bob, que se cansa fácil e é calorento, foi logo se esparramando, feito um tapete, no piso de pedra fria, com forma a se refrescar pelo encontro de sua barriga nua, com o chão.

Olhos claros, azuis, traços finos e uma silhueta esbelta, sucesso resultante, de uma cirurgia de diminuição de estômago, pela prosa, inspirava confiança o dono do pet-shop. Qual era mesmo seu nome? Frank? Fucker? Fode? Ah sim! Fredeinstein! É caro leitor, prepare-se para esta história de terror. Preparem-se pais e mães zelosos de suas crias. Pois esse monstro comedor de criancinhas, não teve misericórdia. Nem mesmo depois de deixarmos claro, que nosso cãozinho, nosso anjinho, na verdade, só se disfarçava... Se tratava de nosso filho. O único.

Fredeinstein, nosso inquisidor, deve ter no íntimo dissimuladamente, considerado o nosso amor desmedido por aquela criaturinha, um sacrilégio, uma heresia, uma profana aberração, como deveria ser, a sua obscura e afastada alma. Só queríamos cuidar bem do nosso filhinho, livrando-o de possíveis e mortais perigos. Por isso sempre a guia (os veículos são muitos e velozes...).

Mas quão insensível e letal pode ser o homem... E por tão pequeno lucro... Pouco mais de dez reais...

Fredeinstein disse que tinha o produto. Que havia comprado grande quantidade, em uma apresentação de embalagem bem maior, do que aquela pequena, comum, de dose única, que habitualmente aplicávamos no Bob. Acrescentou que, como a data de validade poderia expirar, antes de que em seu comércio, conseguisse vender todo o estoque, estaria fracionando doses, devidamente medidas, desses frascos maiores, afim de não ficar no prejuízo, e dessa forma, ainda, poderia atender a clientela, com a qualidade e autenticidade do medicamento, oferecendo um bom desconto. Esse famoso produto a que me refiro, custa, aproximadamente trinta reais. A dose oferecida promocionalmente, sairia por algo mais que dez... Encarei

aqueles olhos azuis e firmei a questão: - Posso confiar? Fredeinstein, fixo no meu olhar, sorriu e garantiu. Parecia um anjo... (Na obra, "Frankeinstein", soma para formar o corpo de sua criatura, membros de corpos de vários homens. Só a alma é sua e única, e se redime no fim. Esse Fredeinstein não, corrompeu a sua...). Autorizei o procedimento e seu assistente, (um certo "senhor Hyde"?) que já preparava a dose num compartimento reservado, chegava para o pronto atendimento. Pagamos a dose aplicada, ainda comprei a coleira repelente, cara, colocamos no Bob, e fomos os três, a família, rumo de casa.

Um pouco antes de chegarmos, o Bob, já demonstrava desconforto. Ao entrar em casa, fui logo tirando a coleira repelente e observando, que atrás de seu pescoço, onde no dorso, se aplica o medicamento, surgira uma vermelhidão que já deixava claro, ser resultado de queimação muito dolorida (só depois de tudo terminado, viria saber que, nunca, o produto autêntico, nem em caso de overdose, provocaria aquela reação).

O Bob nos veio, com características interessantes e especiais. Uma delas, perigosa. Sempre foi muito resistente à dor. Tinhoso, não costumava se queixar de nada. Nunca dava sinal de problemas, mesmo quando havia. Então quando ele começou a se contorcer e gemer de dor, isso logo depois de chegarmos em casa, tive muito medo. Assustei. A Sônia também. Medo, medo, medo. Medo de perder nosso filhotinho... Tomei providência rápida de lavar a região irritada, enxaguando bastante. Coitado, a água fresca para aliviar, causava mais sofrimento. E piorou... Bob começou a demonstrar um comportamento estranho. Além de se contorcer devido à tortura em seu dorso, já sentia os efeitos do veneno, que se espalhava através do sangue. Ele deitava, ofegava, exausto fechava os olhos, e logo em seguida saltava para frente cambaleante e desabava novamente, pra daí a pouco, começar um novo "assalto". Nosso pequenino herói não desistiria nunca, lutaria até a morte. Ela rondava... Ele alucinava... Ligamos imediatamente para uma veterinária, doutora Luciana, outro anjo. Ela pediu que o levássemos até ela. Fomos. O diagnóstico foi fácil, rápido e preciso: - Pupilas hiper dilatadas, intoxicação grave. O fígado, estava sendo severamente castigado. Bob teria que ser sedado imediatamente, para suportar a dor e internado com aplicação de soro intra-venoso. Teria que passar a noite, sozinho, em um lugar estranho e frio, tentando driblar a morte. Sozinho... Argumentei com a doutora Luciana, que se o procedimento fosse exatamente aquele, eu o levaria para casa, e o seguiria à risca. Insisti. Determinei. A doutora confiou, concordou e me instruiu.

No nosso lar, na casa de minha mãe, passamos dois dias e duas noites acordados, eu e Bob. Ele precisava e tentava dormir, mas ainda alucinava e surtava. Eu, nem que quisesse ou tivesse sono, não conseguiria. Tinha que garantir que o soro não se desprenderia e teria que seguir com a medicação. Dormir como? Sonhava acordado com a cura do nosso anjinho.

No nosso lar abençoado, protegido, na casa de minha mãe, de frente à imagem da Virgem Maria, pregada na porta da sala, ajoelhei e chorei. Pedi com toda força e fé de minh’alma à Santa. Fiz promessa... Eu, que me deliciava, com meus quase três maços ao dia, parei de fumar. Eu, que agora, nesse 2008, em 25 de maio, completarei cinco anos afastado desse vício. Eu, que ainda hoje, todos os dias, pelo menos uma vez ao dia, subo as paredes com vontade de tragar. Eu, um poeta que tinha a fumaça como, o oráculo, não vi minha caneta estacionar. Ainda escrevo. Eu, que crédulo por natureza, custei a perceber a armadilha, o engodo. Eu, que se ameaçado, ou a minha família, sou um furioso. Eu e todos nós fomos abençoados! Porque, a pequena luz que nos iluminava a todos, sobreviveu e segue moleque. Recebi a graça da Rainha dos milagres por três vezes: - Não perdi meu filhote - Fiquei cego tempo suficiente para estar tão feliz pela cura, que nem percebi o atentado. Não nasceu o ódio, em mim, naquele dia, não matei o Fredeinstein - E me afastei do vício.

Hoje, ainda sou um homem livre, não cumpro pena. Tenho dó desses Fredeinsteins, tão vazios, tão zumbis... O Bob ainda trança feliz em meio às minhas pernas. Só não sou mais livre, porque, apesar de sem arrependimento algum, não trair minha promessa à Nossa Senhora, em nenhum trago em palha ou maço (conforme combinado), digo pra mim mesmo todos os dias: - Ai que vontade de fumar!.......que tem que passar!........

NOTA: O petshop continua funcionando no mesmo endereço, sob nova direção. Espero que sob melhor direção, Abençoada. Período 2002-2008.

Cassio Poeta Veloz
Enviado por Cassio Poeta Veloz em 14/01/2014
Reeditado em 10/02/2014
Código do texto: T4648958
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