Duas  do 31 na praia
 
 Eu e o mar
 
Há anos não entro no mar. Sem crise nem mágoa. Não estamos de mal. Ele não reclama a minha ausência, pois sabe que não é desfeita. E eu respeito seus perigos, mistérios, sua força e beleza; e também sua zanga, quando bate forte nas rochas, contorcendo-se até as entranhas.
 
Sempre que possível, eu passo um tempo a contemplá-lo, ora sentado numa pedra ao lado da praia, ora num banco na calçada, ou da sacada do apartamento. Veneração que faz bem à alma e me deixa mais perto do Criador.
 
Na verdade, para me banhar, prefiro a água que desce aprisionada em tubos seguindo caminho certo, em curvas e retas, dobra esquinas e desaba de um bom chuveiro, na temperatura que eu determino. Não sou de banheira, muito menos de piscina.

Nada contra um banho de cachoeira, e muito menos contrário aos que se jogam nos rios, invadem os oceanos, brincam nas piscinas. Questão de gosto. Só isso. Ou não? Pode ser mesmo temor de águas abundantes e incontroláveis, no caso dos rios e mares. Uma fobia latente. Leve neurose, quem sabe. Ou coisa que eu trouxe de longe.
 
No último dia do ano, andando no calçadão, senti que o mar me agradecia. Se a multidão que desfilava comigo na manhã, exibindo corpos e corpinhos, bermudas da moda e calções bregas, tênis de grife e chinelos de dedo, gorduras e magrezas à parte, fosse somar-se aos que já estavam enfiados no mar ou aboletados debaixo de guarda-sóis, faltaria espaço nas águas rasas e na areia. Por isso o contentamento dele comigo. Afinal, eu estava colaborando com ele e contribuindo para evitar o caos. Em agradecimento, quando me sentei num banco de madeira para um breve descanso, ele mandou a moça loura passar diante de mim três vezes de bicicleta, descendo e subindo alternadamente junto com os pedais as coxas lisinhas e levemente bronzeadas. E um rosto que veio de um país de fadas.
 
A sacada indiscreta
 
Enquanto os pratos eram finalizados e a turma se preparava para o último jantar do ano, sentei-me sozinho na sacada de copo na mão e, como sempre faço, dediquei-me a contemplar a vista variada. O calçadão plenamente ocupado por gente andando para lá e para cá, a espuma branca do mar que batia suavemente na areia, mostrando-se à luz da rua. Um navio todo iluminado, ancorado ao longe, e os prédios em volta.
 
O arquiteto que projetou o edifício da esquina, à esquerda, provavelmente tenha se esquecido de que as pessoas também podem tomar banho à noite. Então deve ser por esse motivo que as janelas dos banheiros são grandes e localizadas nos boxes dos chuveiros. Daí, todas as noites, da rua e dos prédios da vizinhança aprecia-se um verdadeiro festival de silhuetas apresentando seu balé sob o chuveiro, atrás dos vidros opacos.
 
Uma delas inevitavelmente despertou-me a atenção. Era de uma mulher de graciosos movimentos. Imaginei-a em plena forma, mesmo que possivelmente distante dos melhores anos da juventude, a julgar pela direção dos seios. Eles, os seios, apontavam firmes para frente, como faróis bem alinhados. Nem para baixo nem tanto para cima e com volume bem moldado e absolutamente compatível com o busto ao qual pertenciam.
 
Entretanto, num dos apartamentos do prédio à direita, defronte aquele, observei a cena mais bonita e comovente do ano.
 
Um casal solitário, de cabelos branquinhos como algodão, aprontava a mesa. Iam e vinham da cozinha para a sala com pratos, copos e travessas. Pelos passos ligeiramente claudicantes, suponho que tanto o homem quanto a mulher deviam andar na casa dos oitenta.
 
Com a mesa posta, os dois, em pé, abraçaram-se demoradamente. Com certeza agradecendo um ao outro pela companhia em mais um ano que findava e fazendo votos de continuarem juntos no ano que estava para chegar. Em seguida, sentaram-se e iniciaram a refeição.
 
Perguntei-me quantos casais na idade deles, hoje, podem fazer o mesmo.  Quantos, após anos de convivência, são capazes de trocar um afetuoso abraço? Muitos? Poucos? Vários, talvez.
 
No apartamento logo abaixo ao deles, um jovem casal com dois filhos pequenos também se aprontava para o jantar, sem muita cerimônia. Será que ainda estarão unidos quando seus cabelos atingirem o tom do algodão, como os vizinhos do andar de cima? E trocarão abraços tão carinhosos?

Não sei. Infelizmente é possível, assim como tantos outros casais iniciantes na jornada do casamento nos dias de hoje, que sequer se entrelacem com naturalidade num comovido gesto de amor anos depois. Se ainda estiverem juntos, claro.


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N. do A. – Queima de fogos em Caiobá, praia do Município de Matinhos, Paraná, na passagem do ano de 2013 para 2014, em foto do autor.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 02/01/2014
Reeditado em 06/08/2021
Código do texto: T4633678
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