174 – AS PALAVRAS DA ALMA...

E ela se aproximou do meu carro, olhou pra mim e sorriu, e eu também olhei pra ela e sorri, e ela não disse nada, e eu também me mantive calado, mas aquele olhar estrábico, aquele rosto enrugado, aquela boca murcha pela falta de parte do maxilar inferior que fora extraído em face de um câncer, ela toda torta e alquebrada, mesmo assim, sorria pra mim, naquele momento mensagens cifradas cruzavam no ar, palavras da alma...

E ela olhou pra mim mais uma vez, e mais uma vez não disse nada, e nem precisava dizer, esta velha conhecida minha estava precisando de uma ajuda, prontamente ofereci a ela algum dinheiro, seus olhos brilharam de contentamento, agarrou aquele dinheiro como um naufrago agarra a tábua salvatória, olhou mais uma vez para mim, sorriu mais demoradamente, e mais uma vez não disse nada, e por mais paradoxal que possa parecer eu também me mantive calado, e ela cabisbaixa foi se afastando, fiquei a observá-la, ela que tem um caminhar todo torto, nos seus pés descalços, várias feridas, e de lixeira em lixeira ela a tudo observava, separava quinquilharias, tudo aquilo que ela julgava de algum valor e que suportasse carregar...

Que mundo encantado é este nosso, quanto tempo não a via, num repente ela aparece e desaparece sem nada dizer, mas o seu olhar enternecido ficou e foi o suficiente para desencadear em mim os mais profundos sentimentos a respeito do que realmente somos neste teatro absurdo da vida, porque certas pessoas tem que representar um drama tão triste e tão sofrível, porque outras vivem na mais perfeita harmonia e felicidade, que culpa tem esta alma para receber um corpo tão defeituoso, tão claudicante, e tão frágil?!

Arrependi-me amargamente pelo meu mutismo, deveria ter falado pra ela palavras que a incentivasse a enfrentar os seus desafios, que na certa são muitos, mas aquele olhar e aquele silêncio marcou mais que mil palavras, aquele olhar substituiu a mil palavras, falou por si, bastou em si, naquele olhar ela me disse tudo o que queria dizer, e na certa o meu olhar disse pra ela tudo o que estava sentindo naquele momento, eu compreendi perfeitíssimamente o que ela queria falar e como se sentia naquele instante, penso que ela também compreendeu no meu olhar, tudo o que eu pensava e sentia naquela ocasião!

A hora é de estupefação, a realidade fica distorcida, o que se vê não é o que se sente, e o que se sente não é o que se vê, vê uma mendiga que sem dizer uma única palavra implora por um auxílio, senti isto, mas sou levado para mais além, o pensamento desencanta por entre os vãos dos sentimentos e divaga, avança para muito mais além, além da alma...

Magnu Max Bomfim
Enviado por Magnu Max Bomfim em 23/10/2013
Reeditado em 28/10/2013
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