URUBU NO CINEMA

Estes animais empenados, que vivem soltos pelas alturas, chamados urubus, são feios e sujos, mas com muitos truques para sobreviver no seu dia dia.

O urubu, por ser analfabeto de pai e mãe, e desajeitado, foi cruelmente descriminado pela fauna, e por isso, para se manter, anda virando os lixões e comendo carniça por aí. Para espantar os predadores, e se refrescar defeca e urina nas próprias pernas. Quando alguém tenta pegá-lo, santo deus dos céus! o filho de uma puta, para aliviar, expele o excedente da enfedorentada carga de carniça, que está no bucho, usando contra o inimigo como bomba de efeito moral.

Um urubu bem emplumado, e com a carniça armazenada na moela, pesa mais de vinte quilos. Se você quiser ver um desses planadores nervoso e enlouquecido, coloque-o em uma gaiola. Aí, nessa situação, o seu grasnado é pior que música punk pancadão.

A pacata cidade de Venceslau, lá pelos idos de cinqüenta, era pequena, mas não deixava de ter a molecada que gostava de aprontar umas e outras fazendo mil diabruras e molecagens. No meio deles tinha um, que em especial se sobrepunha pela esperteza, e cruel capacidade de aprontar poucas e boas. Vou chamá-lo aqui de Bagre, visto que hoje é pessoa de renome e imaculada figura na região.

Qualquer coisa de sacanagem que acontecesse na cidade, sem erro de errar, o povo apontava para o Bagre.

- Foi o Bagre! não vi, mas posso afiançar que foi ele.

O tal de Bagre era terrível e implacável. Só não estava preso por falta de provas, e porque a molecada muitas vezes se aproveitava da fama dele para aprontar algumas também. O currículo do Bagre, no quesito sacanagem, era de causar inveja para qualquer Tom Sawyer ou pica pau.

Se aconteceu alguma coisa de errado na cidade, não tinha erro, era senso comum: - foi o Bagre! e pronto.

E o Bagre não deixava de se divertir com isso.

Naquele sábado a primeira seção do cinema estava para iniciar. A fila do lado de fora, para a segunda seção, se perdia dobrando a quadra. O calor, dentro do cinema, de 40 graus era insuportável, e as madames com seus leques abertos ventilavam o rosto maquiado. O perfume abanado de mil essências parecia de uma floricultura.

Foi dado o sinal e pontualmente as dezenove horas a seção teve início.

Olhos atentos na tela, e mil mãos de casais apaixonados, se afagavam timidamente em caricias tantas.

O filme era de suspense, e uma coisa estranha começou a fazer parte do espetáculo exatamente no delicioso momento em que cada um, na sua poltrona vendo o filme, tremia de medo, com o cu na mão.

Foi assim que aconteceu.

Durante a exibição do filme, de repente, como numa visão infernal de terror de final dos tempos, ouviu-se o som estranho dum punk gralhando desesperado, e imediatamente exalou-se pelo recinto um cheiro horrível de merda temperado com urina.

O povo sem entender das modernidades dos filmes do seu tempo, imaginaram que fossem cenas reais acompanhando o filme. O plac plac cadenciado das asas pretas de enormes asas, mijando e cagando não só nas suas pernas, mas nas cabeças dos espectadores deu um toque maior de realismo. Mas quando a ave negra pôs prá fora o excesso de carga putrificada de suas entranhas é que o povo se deu conta da merda em que se encontravam.

O enorme urubu venceu o espaço, que ia do banheiro a tela, em poucos segundos, o suficiente para fazer o maior estrago ao passar pelo público, e depois ao se chocar violentamente rasgando a tela de exibição do filme.

O povo gritava desesperado com as narinas tampadas pelos dedos; Nem Dantes conseguiu tamanha clareza ao descrever o inferno como aquilo que aconteceu no cinema. Depois de algum tempo é que o dono do cinema se deu conta do que estava acontecendo.

Trancou imediatamente todas as portas, acendeu as luzes e gritou pelo alto falante:

- Bagre, você está fodido! a policia está aqui e vai te prender!

Enquanto o povo em desespero se entreolhava na busca do filho de uma puta que fez aquilo, recebia descarga de mais urina e mais merda do urubu que desesperado sobrevoava procurando uma saída.

- Bagre "têge" preso! não adianta se esconder seu vagabundo desordeiro!

Enquanto a polícia gritava pelo nome do meliante, o fedor do ambiente aumenta, e franzinas mulheres fedidas desmaiavam aqui e acolá.

O Tiro de Guerra veio para organizar a bagunça e definiu:

- Primeiro as mulheres grávidas, os anciãos e por fim os marmanjos!

Queriam por toda a lei finalmente pegar o Bagre. O Bagre realmente estava sem saída. Estava literalmente fodido.

O urubu finalmente cansado, trombando novamente contra a tela, foi pego desacordado e levado pelos policiais para prestar esclarecimentos. E o calhorda desordeiro que aprontou a encrenca não tinha sido encontrado ainda.

E a pergunta que todos faziam:

- Onde está o Bagre?

A fila indiana enorme era passada em revista.

Por falta de tela a segunda seção foi cancelada.

Depois de muito tempo, quando a última vítima cagada e fedida era passada em revista, as autoridades puderam realmente verificar que, vasculhando todo o ambiente, o Bagre se escafedeu.

Decepcionados, tanto os donos do cine como a autoridades policiais, ficaram ao descobrir, ali mesmo na confusão, informados pelo chefe de estação de trem, que no dia anterior o Bagre tinha tomado o trem rumo a São Paulo.

Como a norma jurídica tem como característica a generalidade, ou seja, é aplicada igualmente para todos, e não havendo o suposto transgressor humano, o delegado optou por prender o urubu por invasão de propriedade alheia e causar tumulto generalizado.

Diz a lenda que ele morreu triste acorrentado.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 18/10/2013
Código do texto: T4531422
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