O meu saco de maldades
(Confesso que pequei)
 
Não fui um guri mau. Sempre me comportei da melhor forma possível. Não me lembro de nenhuma nota no boletim inferior a dez, no quesito comportamento. A tia Miloca dizia que eu era uma pérola de menino. As outras tias, embora não usando o mesmo adjetivo e à maneira de cada uma, concordavam.
 
No entanto algumas vezes o meu anjo dava uma relaxada e baixava a guarda. Então eu entrava em clima de desatino e cometia pequenas ou grandes maldades das quais sempre me arrependia depois.
 
O apontador
 
Lembro-me de muitas professoras e professores que tive ao longo da minha vida escolar e acadêmica. Air Macedo me ensinou o bê-á-bá. Depois vieram as professoras Mentara Fatuch, Marli Guimarães e Zuleika Moro, respectivamente das segunda, terceira e quarta séries do curso primário. Também guardo bem viva na memória a Luiza Kafka, amiga da minha irmã e, assim como as outras, docente do Grupo Escolar Prieto Martinez, que algumas vezes me deu lições particulares de reforço, no contra turno.
 
Uma aula precoce de ciências, no primeiro ano. A cena me vem facilmente à lembrança. A sala e o cartaz colorido pendurado na parede mostrava um didático esqueleto humano em tamanho natural. A mestra, munida de uma régua, dava nome aos ossos e explicava em linguagem bem simples a função de cada um. Deteve-se bastante nos maxilares. Falava da possibilidade de o inferior vir a se deslocar e que para encaixá-lo de volta no lugar bastava aplicar um soco no queixo da vítima ou algo parecido.
 
Aquilo foi demais para mim. A vista escureceu. Senti uma moleza no corpo. Sorte estar sentado. Debrucei-me sobre o tampo da carteira.
 
O episódio me serviu para descartar de imediato algumas possíveis profissões no futuro. Decidi e nunca mais pensei nisso. Seria bombeiro, carpinteiro, poeta ou diplomata. Dentista, médico ou afins, jamais.
 
Agora a maldade. Minha mãe comprou para mim um apontador que consistia de um suporte metálico onde se encaixava uma gilete, de modo que era possível apontar o lápis sem risco de cortar os dedos. Era uma novidade. Todo mundo queria ver o tal artefato.
 
A ponta do lápis desgastada nas pautas do caderno de linguagem. Fui à lixeira, no canto da sala, apontá-lo com o apontador novo. Um coleguinha me seguiu e, assim que eu terminei de apontar o meu, pediu que apontasse o dele também. Pois não, eu falei.
 
De costas para ele, de maneira a impedi-lo de ver o estrago antes da hora, apontei o lápis de uma ponta à outra. Virei-me e o devolvi completamente pelado e fininho.
 
- Fessora, olha o que o João Carlos fez com o meu lápis!
 
A professora deu-me uma exemplar reprimenda e me obrigou a dar o meu lápis, caprichosamente apontado, para o garoto ofendido.
 
Pimenta na boca dos outros também arde
 
Um casal muito simpático, jovem, com duas menininhas. Uma de colo e outra de uns quatro anos mais ou menos, a Rita de Cássia. Vieram de Florianópolis tentar a vida em cidade maior e moravam de aluguel numa casa vizinha à nossa. Não me lembro do nome dele, porque só o chamava de Catariana. Ela, Eli. Mas eu fazia questão de chamá-la de Dona Eli.
 
Em contrapartida, ele também não me chamava pelo nome. Apelidou-me de Caicai. Não sei por quê. Coisa da Ilha, suponho. Os descendentes de açorianos são dados a alcunharem-se com apelidos nem sempre aderentes ao contemplado, mas de certa graça.
 
O Catarina era motorista de lotação. De vez em quando me levava com ele para uma viagem.
 
- Queres dar uma volta de lotação comigo, Caicai?
 
Rumávamos para o ponto esperar o carro do seu turno. Eu me acomodava num banco bem à frente e ele ao volante. O passeio era longo. Ia das proximidades do Cemitério Municipal até o antigo hipódromo, onde hoje é o campus da PUC. Na volta eu descia no ponto mais próximo à minha casa e ele continuava o expediente.
 
Uma vez a Rita de Cássia encantou-se com um pé de pimenta vermelha carregadinho no nosso quintal.
 
- O que é isso, Caicai?
 
- Uma fruta muito deliciosa.
 
Escolhi uma pimenta madura e fiz de conta que mordi um pedaço.
 
- Já está bem doce, quer provar?
 
Ela mordeu a pimenta com gosto. Coitadinha. Deve ter ardido até a alma, assim como ardeu na minha quando a vi correndo para casa aos berros.
 
Beija-flor no espeto
 
Eu e o meu amigo Carlos Alberto resolvemos caçar num mato perto de casa. Revisamos nossas cetras, preparamos com capricho pelotas de barro, queimadas numa pequena fogueira para ficarem bem duras.
 
Com os estilingues pendurados no pescoço e os bolsos cheios de munição, andamos o quilômetro até a mata. Dia ruim. Nada de caça. Alguém deve ter avisado os passarinhos que a gente ia estar na área e eles sumiram. Os poucos que ficaram não conseguíamos acertar lá no alto das árvores com nossas pontarias sofríveis.
 
Aborrecidos, decidimos ir embora. No carreiro de saída nos deparamos com um colibri sugando flores. Um de nós atirou e acertou. Até ganhar a rua fomos matando outros da mesma espécie.
 
No meio do caminho de volta paramos na casa de uma tia do Carlos Alberto para beber água. No jardim aproveitamos para caçar mais alguns beija-flores. Fomos para casa com a caçada feita, embora não dos passarinhos que queríamos.
 
Nos fundos do quintal lá de casa havia um chuchuzeiro que crescera sobre alguns arbustos, formando uma espécie de caverna, alta e grande o suficiente para caber várias pessoas em pé. Fomos para lá, depenamos os bichinhos, tiramos as vísceras, passamos manteiga com sal e os espetamos cuidadosamente em varinhas secas.
 
Enquanto o Carlos Alberto preparava o fogo eu fui buscar a Mirna na casa dela. Em pouco tempo nos vimos os três com os dedinhos equilibrando as pequeninas aves nos lábios, tentando tirar alguma carne dos frágeis ossinhos.
 
Uma ideia no calcanhar e uma enxada na cabeça
 
Eram três irmãos: Sílvio, Orlando e Silvete. Os meninos um pouco mais velhos que eu e a menina regulando comigo ou ligeiramente mais nova.
 
Uma tarde, nós quatro preparávamos o terreno entre duas laranjeiras lá de casa, para brincar de carrinho. Com uma enxada eu raspava a terra em retas e curvas, para fazer de conta que era uma estrada. Todo mundo dando palpites. Vamos fazer assim ou assado. Um morrinho aqui, um precipício ali. A Silvete azucrinava-me o juízo sem trégua, até que, impulsivamente, lasquei a enxada na cabeça dela.
 
Foi um desespero. Com a gritaria, acorreu minha irmã. Examinou a cabeça da menina e levou-a para dentro de casa. Eu e os dois piás, assustadíssimos, fomos atrás. No cortezinho superficial a Glacy passou um exagero de mercurocromo.
 
Felizmente três fatores consorciaram-se para que o ato impensado não resultasse numa tragédia: a enxada totalmente cega, minha falta de jeito com ela e a espessa cabeleira da Silvete. Graças a Deus.
 
Tirando o cavalo da cerca
 
Na boca da noite ainda brincávamos na rua. Não me lembro de quantos piás éramos.
 
O Eurico chegou a cavalo e o amarrou na cerca da casa do tio dele. Entrou e demorou-se.
 
Alguém teve a ideia de soltar o animal só para ver a cara do Eurico, quando ele voltasse. Mas ninguém tinha coragem suficiente. Só vontade.
 
Talvez querendo me passar por corajoso e destemido, desamarrei a rédea da cerca e apliquei um ou dois tapinhas nas ancas do cavalo. Ele saiu em disparada pela rua, virou na primeira esquina e sumiu.
 
Ao retornar e não ver a montaria, o Eurico entrou em desespero. A turma gritou que ela tinha fugido. Claro que ele não acreditou e, como em todo grupo sempre surge um dedo-duro, não demorou muito para que eu fosse denunciado.
 
O guri, em prantos, foi-se queixar ao meu pai. A bronca que levei não foi nada perto da noite que passei com a minha consciência me acusando o tempo todo. Imaginava o pai do Eurico não podendo trabalhar, porque não teria mais o cavalo que puxava a carrocinha de vender frios nos bares e armazéns. Em outras cenas eu via o animal triste, perdido e vagando pelas ruas, sedento e faminto. Logo um cavalo, bicho pelo qual sempre tive grande afeição.
 
Só fiquei tranquilo quando soube, no dia seguinte, que o animal, acostumado com as ruas do bairro, havia ido direto para casa. Então, estava tudo bem.
 
Ovos e galhos
 
Eu o Carlos Alberto achamos um ninho de ovos de galinha abandonado. Pelo aspecto do entorno fazia muito tempo que a dona não aparecia. Certamente já estariam podres, imaginamos. E de fato estavam.
 
Recolhemos os ovos e reservamos para usar mais tarde. À noite, após o jantar, quando tudo já estava calmo no bairro, saímos para brindar alguns vizinhos da rua dos fundos da minha casa, espatifando os ovos podres nos portões e portas. Não era por raiva de ninguém, pois todos eram gente boa. Patética diversão somente.
 
Em outra ocasião, percebemos um vizinho, também da rua dos fundos, amontoando do lado de fora da casa galhos podados das árvores do quintal. Eram restos de pereiras, macieiras, laranjeiras etc. Grandes e pequenos. De todas as bitolas.
 
Na calada da noite, eu e o Carlos Alberto trabalhamos duro só para dar trabalho a dois outros vizinhos na manhã do dia seguinte. E dar umas boas risadas.
 
Com cuidado e em silêncio para não sermos pegos com a mão na massa, distribuímos os galhos maiores entre os dois, bloqueando os seus portões. Para sair de manhã, primeiro tiveram que retirar os obstáculos. Danados da vida, querendo saber quem tinha sido o autor ou os autores da façanha para, em dupla, aplicar exemplar descompostura ou possível sova. Ainda bem que nunca descobriram.
 
A mão indiscreta
 
Um fim de semana, meu pai e meu cunhado viajaram para caçar. Minha irmã, para não ficar sozinha com as crianças, baldeou-se lá para casa. Ela, os três filhos de então e uma sobrinha do meu cunhado, mocinha de uns 16 ou 17 anos, que morava com eles.
 
Como vivíamos na casa apenas eu e meus pais, e não tínhamos o costume de receber hóspedes, não havia como acomodar todo mundo em camas e quartos. Assim, minha irmã dormiu no meu quarto, sozinha na minha cama. Minha mãe com um dos meus sobrinhos e a sobrinha neném, na cama de casal do quarto dela e do meu pai. No mesmo quarto, improvisou-se no chão, com um colchão sobressalente e acolchoados, uma acomodação para mim, a mocinha e o meu sobrinho mais velho entre nós dois. Nenhum problema, porque, às vésperas da puberdade, ainda me consideravam uma criança.
 
Todo mundo acomodado para dormir, e nós, as crianças, felizes com a improvisação. Apagaram-se as luzes.
 
No escuro, a mocinha, sempre muito brincalhona, estendeu o braço por cima do meu sobrinho, para alcançar minha cabeça, e com as pontas dos dedos simular um bicho no meu cabelo, com o propósito de me assustar. Não deu certo porque logo percebi a brincadeira e retribuí com outra.
 
Lentamente abaixei um pouco a calça do pijama, depois segurei a sua mão e a desviei da minha cabeça para o pinto. Ao sentir o tamanho da responsabilidade, ela gritou escandalosamente:
 
- Dona Joanita, o João Carlos me fez pegar não sei onde!
 
Minha mãe pulou da cama apavorada. Acendeu a luz e me repreendeu severamente. Mas como não tinha como rearranjar a situação, todo mundo dormiu onde já estava.
 
Antes de me entregar aos sonhos em posição de estátua, ainda pude sorrir e pensar que finalmente haviam descoberto que eu já não era tão criança.

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N. do A. – Na ilustração, detalhe e A Expulsão do Paraíso de Michelangelo (Itália, 1475-1564).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 18/10/2013
Reeditado em 16/01/2021
Código do texto: T4530715
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