Nada além

Me perguntaram por que não devemos temer o escuro. Bem, não sei se respondo isso como a criança que já fui ou como o adulto em que me transformei. Na infância, o escuro parece terrível, encerrando monstros enormes, vozes obscuras, mãos que tocam nossos calcanhares, sopros nas orelhas e puxares de coberta. Quando criança, enxergamos o escuro como o avesso daquilo que vivemos. O outro lado da vida ensolarada nas calçadas dos bairros, das praças desbotadas, dos intervalos breves nas aulas intermináveis. Na escuridão é tudo estranho, ninguém está por perto, as janelas batem, as portas rangem, os pais estão distantes e embaixo da cama explode o universo sobrenatural.

Ainda na infância, surgem as mais perigosas e assustadoras tarefas justo quando não tem luz em casa: levar o lixo para fora, pegar a bolsa da mãe no quarto mais distante, entrar no armário de tralhas para encontrar um par de luvas, se olhar no espelho, pegar os chinelos embaixo da cama, as velas na gaveta mais baixa da pia. É, o escuro realmente deturpa a infância, e como.

Já quando adultos a escuridão é, muitas vezes, porto seguro. Cais de nossos choros, confidente de nossos abusos, alcoviteira de nossas paixões mais bobas ou mesmo as mais quentes. Mas nem por isso deixa de trazer algum temor, sim. Ainda adultos a escuridão impõem seu terror. As suas sombras, que caminham conosco, os seus sons infernais, o seu tom de luto eterno.

No entanto, nós vamos, e devemos, crescer. Esse medo do escuro pode sumir completamente, ou tornar-se algo insustentável. Caminharemos na calada da noite, e cada beco desconhecido, cada canto isolado, aumentará o escuro em nós. Não vai adiantar correr, chorar, nem mesmo se esconder, pois seremos nós, e somente, os baús que encerram esse escuro.

Mas não, nem tudo está perdido. O escuro, apesar de parecer tenso, pesado, denso, pode sim ser algo inexplicavelmente belo. É só com a noite que podemos ver o brilho de uma estrela. Somente à noite o mar parece mais imponente, quando, no fim do horizonte desconhecido, ele se perde no fundo do breu, e toda a paisagem parece ser apenas uma imensa tela negra.

Isso me faz lembrar do poeta Hart Crane, que, numa crise de depressão, lançou-se ao mar, no meio da noite. O que ele viu naquela hora? O adeus da vida, o olá da morte? Será que sentiu algum medo, naquela incomensurável paisagem negra, escura? Não sei. Penso apenas que ele pôde presenciar o peso insustentável da escuridão, aquela que não traz, necessariamente, medo, somente a contemplação. Sim, o escuro é isso, a ausência do que vemos em detrimento daquilo que achamos que vemos.

Se a cor é mera ilusão de nossa cabeça atarefada, então o que temos de fato é o escuro, o escuro e suas nuances. O escuro da mata, do fundo do mar, do quarto, da solitária, da alma, da morte, do luto, do fundo dos olhos, do café, da vergonha, do pecado, do silêncio, da sombra de um sorriso, o escuro do adeus. Sim, o escuro tem suas formas e ocasiões.

Pode tanto ser horrível, como pode ser companheiro. Pode durar um instante, ou até um ano inteiro. Pode cair bem em algumas ocasiões, ou pode mesmo soar indesejável. No fundo, acabo achando que não se deve ter medo da escuridão simplesmente porque, mesmo que não queiram ou não gostem, todos possuem a sua própria luz e, consequentemente, sua própria escuridão.

Se neste momento as luzes se apagarem, não tenha medo. O verdadeiro terror está além das cortinas escuras que margeiam os dias. Mas, se o medo persistir muito ainda, então acenda uma vela, pegue uma folha de papel e escreva sobre seus terrores, a luz pode voltar a qualquer instante.

Nictófobos, escotófobos, não se assustem, tá? Isso é apenas um texto qualquer sobre o escuro.

*originalmente de 13/07/2012