Os pacientes do doutor Fróide

Nietzsche disse: “Zaratustra é a prova de que se pode falar com a maior clareza e não ser entendido”.

Quase sempre à tardinha, José Azambujanra (personagem principal dos livros “Trem Fantasma” e “”Os pacientes do doutor Fróide”) conversa comigo e o assunto sempre gira em torno de literatura, cinema e teatro. Desta vez ele me trouxe dois poemas e comentou o trecho do texto Os pacientes do doutor Fróide pp. 12-19, edição 2007. Percebi Azambujanra deprimido. Talvez os leitores não possam entendê-lo, por ser ele considerado um herege ou mesmo um ateu! Então, resolvi transcrever as duas poesias e o trecho do texto do referido livro:

“Herege graças a Deus”

- Achas que sou herege?

O padre na igreja me disse:

O seu nome é de herege;

O nome não tem nada a ver!

No outro dia,

Logo bem cedo,

A calma somente;

E pediu: Deus me livre!

Eu tinha só dez anos,

Não disse nada a papai,

Só disse a mamãe:

Por que o padre não gosta de mim?

Hoje tenho sessenta e seis anos,

Já vi gente com nomes diversos,

Gente da pior espécie:

Mentirosos, ladrões e assassinos.

Qual a sua religião?

- Sou herege graças a Deus!

Recife, 02/08/2008

Do livro: “Fiteiro Cultural”, ed. 2011- pp.277-8.

Para os leitores entenderem,

Uma vez resolvi perguntar a um pastor:

Por favor, quem criou os filhos?

- Os pais.

E os pais,

Quem criou?

- Os avós.

E os avós?

- Os bisavós.

E os bisavós?

- Os tataravós.

E os tataravós?

- Os pais deles.

E os pais deles?

- Os primeiros humanos.

E os primeiros humanos?

Até hoje ninguém sabe explicar!!!

Rio de Janeiro, 29/08/1980

“(...) - Com o avanço tecnológico da informação, atualmente alguns dos meus clientes são internautas. Estou tratando-os separadamente. Antigamente quando alguns radiotelegrafistas ficavam com problemas psíquicos, misturavam-se com os dependentes químicos. O tratamento era à base de internamentos nos hospitais psiquiátricos. Agora nós temos outros meios: são as fazendas doadas por entidades filantrópicas, que se dedicam ao tratamento e recuperação de drogados.

- Eu lembro. Na Casa de Saúde, mesmo, tinha um colega internado que era radiotelegrafista. Com o uso obrigatório dos fones nos ouvidos, recebendo descargas sonoras, ele ficou com problemas neurológicos. Na época denunciei o Sistema... – entrecortou doutor Fróide:

– Se você for omisso em aceitar calado tudo isso, como o nosso Brasil irá reverter esse quadro? Bom, mudando de assunto, como vai o inquérito policial?

- Anda muito confuso, fica difícil. Quanto ao trintoitão da Carmem, já me comuniquei com os detetives Getúlio e Medeirinho.

- Foram eles que desvendaram o assassinato das estudantes Maria Clara e Thaís Evangelista. – disse doutor Fróide.

- Getúlio e Medeirinho estão checando todas as mensagens do grupo...

Eram quinze horas, no consultório do Dr. Fróide, quando entra o segundo paciente:

- ‘Vês? Ninguém assistiu ao formidável / Enterro de tua última quimera, / Somente a Ingratidão – esta pantera – / Foi tua companheira inseparável! // Acostuma-te à lama que te espera! / O homem, que nesta terra miserável, / Mora entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera. // Toma um fósforo. Acende o teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro, / A mão que afaga é a mesma que apedreja. // Se alguém causa inda pena a tua chaga /

Apedreja essa mão vil que te afaga, / Escarra nessa boca que te beija!’

- De Augusto dos Anjos. – disse o psiquiatra.

- Eu. – disse o psicopata.

- É, Eu de Augusto dos Anjos.

- Eu, me chamam. Qual é o problema? – O psiquiatra ficou receitando sem olhar para o paciente. – O Beco. O senhor conhece o poema do Beco?

- Não é de Manuel Bandeira?

-Não é. Realmente, é meu o Beco.

‘Que importa

A paisagem,

A glória, a baía,

A linha do horizonte?

- O que eu vejo é o beco.’

- Boa. Meus parabéns. Tome esse remédio agora e o outro à noite. – despachou o paciente, chamando o terceiro paciente que estava na sala de espera falando alto e exaltado. Quando chamado já entrou falando, prosseguindo com o assunto que vinha lhe perturbando:

- São essas as criaturas de Deus! Não fica difícil de entender esse povo. Querem provar a existência de Deus com perseguições, desunião, inveja, et cétera, et cétera... José Azambujanra está mais do que certo. Ele está sendo vítima do sistema religioso... – com a voz pastosa , cansado, continuou – São elementos relacionados entre si, formando um todo, e o grande comandante é Deus. Esse pessoal tem costume de se benzer quando sai de casa, quando se acorda, quando vai dormir, quando passa em frente às igrejas católicas... – entrecortou dr. Fróide – José Azambujanra, você o conhece?

- É um homem branco. Se fosse negro, que nem eu... Esse pessoal ia dizer o quê? – e respondeu à própria pergunta: “É negro por derradeiro”. – Não é verdade?

O quarto paciente entrou recitando “Declaração de amor em vermelho e branco”, de Renato Coração de Poeta:

‘Nasceu nas águas do Capibaribe / Não há outro mais recifense que você /

”Clube Náutico Capibaribe” / Razão maior do meu viver // Há cem anos que você me apareceu / Aconteceu num dia sete de abril / Meu coração bateu forte, enlouqueceu /E de Vermelho e Branco se vestiu...’

- E você é branco pra torcer pelo Náutico? – disse um paciente torcedor do Sport.

- Nego besta – disse outro paciente torcedor do Santa Cruz.

Enquanto isso, na sala de espera um dos pacientes começou a representar “Manicômio”, de Waldir Martins (in memoriam):

‘(...) ‘Grande povo brasileiro, / Homens-grandes dessa terra, / Eu sou D. Pedro I, / Presidente da Inglaterra; / Venho aqui por derradeiro / Aliar-me a essa guerra.’ / Ta todo mundo doido! // Os doidos tão no poder!... / Menino, que confusão; / Todos eles de gravata, / Os bolsos cheios de prata / E uma bomba em cada mão... / Sai da frente que lá vem mais! // Sereno de amor... / Sereno de amar... / É por causa da morena / Que eu quero me matar. // Outro dia fiz morada / Num terreno abandonado / Bem na beira da estrada. // Deixei barraco montado, / Taquei o pau na enxada; / Ao redor plantei um gado, / Um pé de coruja magra, / Uma cobra, uma cabra... // Criei mamão, banana, / Um casal de cajarana, / Uma garrafa de cana... // Tava tudo bem certinho / Quando chegou um sinhosinho / Com a bunda cheia de bosta, / Cheio de nó pelas costas, / Dizendo preu sair, / Que aquela terra era sua, / Que eu me pusesse na rua / Antes do sol cair. // Me deu vontade rir. / Aí eu perguntei: / Me diga por favor, / A quem o senhor comprou? / Ele respondeu: / Ao seu Dirceu. // E o seu Dirceu / Comprou a quem? / Ele respondeu: / A Matusalém. // E Matusalém?... / - Ao seu Nestor... / E o seu Nestor?... / - Ao seu Bartô../

E o seu Bartô?... / - Ao outro dono!... / E o outro dono?... / - Ao outro dono!... / E o outro dono?... / - Ao primeiro dono!!!... / E o primeiro dono / Comprou a quem?! / Ele não soube responder. // Ta vendo que não convém!! / A terra não é de ninguém, / É de quem dela cuidar // Tava aqui desprezada, / Suja, descabelada, / Sem home, sem nada, /

Querendo se casar, / Topei a parada...”

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José Calvino
Enviado por José Calvino em 22/09/2013
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