INCONVENIÊNCIA


Gosto demais dessa palavra! Eu me identifico com ela num tanto que até eu me assombro.


Quando se fala em pessoas inconvenientes logo se pensa naquelas fora do contexto que rola no momento, tipo criança que fala pra visita que o pai mandou dizer que não está, ou o vizinho que liga o som no máximo, geralmente com música de mau gosto quando você está a fim de curtir o seu silêncio, ou o celular que toca bem no meio da sessão de cinema ou teatro. O mundo está cheio dos chamados inconvenientes dessa espécie.

Mas o verdadeiro inconveniente (o que mais me encanta) é o sujeito que coloca em situação constrangedora as pessoas ao seu redor, não por entregar alguma culpa alheia ou incomodar pela própria presença, mas por contrapor unanimidades. O inconveniente é o sujeito que está na hora certa, no lugar certo, mas diz o que não querem ouvir.

Vivemos também cercados desses inconvenientes. É uma pena que a maioria deles não manifesta em palavras a inconveniência dos seus pensamentos, o mundo seria muito mais divertido.  Um dia desses, na fila do supermercado, uma criança puxava a saia da mãe, querendo a sua atenção para qualquer coisa e ela, interessada mais na conversa com a amiga, ignorava as queixas do filho. Quando o menino lhe tornou inconveniente repreendeu-o rispidamente.  Eu a repreendi também, dizendo-lhe que se tivesse dado atenção ao primeiro puxão de saia teria se e nos aborrecido menos. A mulher saiu do supermercado odiando a minha inconveniência e a caixa fez cara feia pra mim, mas tenho certeza que a mãe se lembrará do episódio na próxima vez que o filho lhe puxar a saia.

Também o diálogo que presenciei entre uma senhora obesa que aconselhou a magra fumante sobre parar de fumar, ao que ela respondeu que não poderia, pois tinha tendência à obesidade e fatalmente engordaria se parasse, porque estatisticamente os obesos tem mais chance de morrer precocemente que os fumantes. Todos os presentes foram solidários à obesa, preferindo que a fumante engolisse o seu não politicamente correto vício. Eu amei a inconveniência da resposta.  

Inconveniente é quem fala o que pensa, sem pensar no que fala, é certo, Mas é justamente isso que eu adoro. Na sinceridade da inconveniência. Você já reparou que todo inconveniente é sincero? Sincero, impulsivo e imprudente, pois cada fala de cá pode trazer uma fala de lá, mas não é justamente nas consequências da inconveniência de alguns que surgem o contraponto, a oposição, a obrigação de se pensar as coisas de outra maneira? As maiores descobertas, as maiores invenções, as grandes obras literárias e arquitetônicas, as grandes revoluções, surgiram de pessoas que ousaram contestar a unanimidade anterior. Imagine quantas vezes foram tachados de inconvenientes, nas rodinhas de amigos, nas primeiras vezes em que falaram o que pensavam. Quantos até morreram por se tornarem inconvenientes ao sistema vigente!

Por ser inconveniente morreu Cristo, como prova a História. Não o mataram por temerem a tomada de algum trono para si, mas pelo temor do poder de suas palavras. Não convinha ao sistema. Só o ressuscitaram quando puderam usar as suas próprias palavras, e outras tantas atribuídas a ele, para a conveniência de alguns.

O mais recente inconveniente famoso que me ocorre foi o Papa Francisco que, para surpresa de quem adoraria que a Igreja Católica colaborasse com o seu conservadorismo para a sua própria derrocada, reverteu a situação a seu favor. E o mais atemporal de todos foi Marx quando afirmou que a religião é o ópio do povo.

É a inconveniência que move o mundo. Para o bem ou para o mal.




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