GIBA E O ENSINO MÉDIO

“Giba”, foi o apelido carinhoso dado a Gilberto, ainda na barriga da mãe, com dois meses de gravidez. Pegou e quase ninguém o chamava pelo nome lavrado no Registro Civil e nos livros da Igreja de Nossa Senhora do Ó, em S.Paulo, onde nascera. Ali seus pais contraíram matrimônio celebrado pelo Pe. Cantídio, atual Monsenhor. Era Giba para lá, Giba para cá e, durante as primeiras fases da infância, em família, Gibinha!

Era filho de um mecânico, proprietário de uma oficina especializada em veículos movidos por motores a óleo diesel. A oficina ficava em uma loja que ocupava a parte frontal do prédio que dividia com a morada da família.

Arquimedes vivia bem com Gerusa, sua mulher, e estavam casados já há 25 anos. Já fazia alguns dias que estavam programando um festão para comemorar a data das “Bodas de Prata” e até pensavam em contratar uma banda de forró para alegrar o evento. Alugariam o salão do Clube e convidariam todos os amigos e parentes...

A oficina tinha espaço considerável comportando, folgadamente, uns dez veículos. O ferramental disponível, diversificado, tinha apoio de eficientes máquinas que adquirira num leilão da Receita Federal, resultado da apreensão de contrabando apreendido nas imediações de Sobradinho, cidade cortada pela Rodovia BR-020, região do entorno do Distrito Federal.

Passando a infância e parte da adolescência no âmbito profissional paterno era natural que desenvolvesse algum pendor para a mecânica e fosse desenvolvendo alguma prática no uso das ferramentas e na solução de pequenos problemas mecânicos. Já era considerado um auxiliar do pai e tinha seu lugar entre os demais empregados.

Talvez por esse envolvimento profissional precoce, Giba nunca se havia revelado um bom aluno, tanto durante o Curso Fundamental quanto nos primeiros meses do Ensino Médio. Passava de ano se arrastando, sempre após algumas “recuperações”. A escola era ideologicamente direcionada para abster-se de reprovações, pressionada pelo “sistema” ávido de números positivos, nas estatísticas, para análise favorável de organismos internacionais.

Com três meses, assistindo aulas no Ensino Fundamental, passou a sentir algum interesse nas aulas de Sociologia. Antes mesmo de sua matricula, ouvia comentários de colegas da nona série, de que o professor dessa matéria, no Ensino Médio, era “fera”, que havia sido formado pela Universidade de São Paulo, pertencera ao "Diretório Estudantil" e que estava prestes a iniciar pós-graduação na UNB.

Assim, a partir das primeiras aulas, revelou ser um aluno atento e interessadíssimo em ouvir as preleções do professor que, aos poucos, foi sendo instalado em seu imaginário, como um mito, num pedestal de cultura e sabedoria.

As aulas eram conduzidas muito menos pelos conteúdos curriculares do que pelos conteúdos ideológicos do mestre. Desde os primeiros dias, tão logo percebeu o tipo de “feed-back” que poderia encontrar, na classe, passou a discorrer sobre questões ligadas às lutas de classe, organizações sindicais, discursos anti-capitalistas, ativismo partidário, militância, etc... etc...

Assim, escolheu os alunos mais permeáveis aos seus ensinamentos sendo Giba o mais promissor dentre os demais... Ministrava as aulas, sempre em tom de diálogo, transmitindo idéias e colhendo respostas, quase sempre concordantes, daquela matéria que começava, por ele, a ser moldada.

Não demorou muito e Giba já havia desenhado em seu cérebro, um símbolo contendo uma foice cruzada por um martelo, inseridos numa estrela branca em fundo vermelho... Picado pelo ensino do professor, já começava a olhar, com visão crítica, a relação entre o pai e os funcionários no ambiente de trabalho...

Ampliando essa visão, passou a estabelecer comparações entre as relações dos bancos com os tomadores de dinheiro, bem como a atuação das grandes empresas na influenciação na coisa pública e nas lides políticas. Já havia decidido expressamente estar posicionado, ideologicamente à esquerda e, como tal, assumiria posição de militante da causa...

Poucos dias antes da comemoração das bodas estourou um movimento social, em que multidões saíram às ruas protestando contra os desmandos e a corrupção em todos os escaninhos do poder, bem como reivindicações decorrentes da ausência de resposta do poder público diante dos escorchantes impostos pagos pelo contribuinte.

Giba, assíduo freqüentador das “redes sociais” sorvia, com avidez, as noticias dando conta de que seria lançado um movimento nacional em protesto e em reivindicação de direitos que os sindicatos consideravam de urgente concessão.

Anotado o dia, a hora e o local exato da concentração, Giba estava decidido a dar o pontapé inicial na vida de militante. Assim, participaria ativamente do movimento, em cooperação, cumprindo com sua parte para o progresso e o bem estar social. Dali para a frente, seria mais um “engajado”.

Era uma quinta-feira e Giba levantara cedo, com o coração aos pulos, no afã de exercitar o seu veio pelo social, pelo coletivo. Pegou sua motocicleta, enfiou uma garrafa de água na mochila e se mandou para o Plano Piloto. Foi parar nas imediações da Catedral, local em que já se encontrava aglomerada uma pequena multidão.

Não demorou muito e ondas de gente conduzindo bandeiras e gritando palavras de ordem vinha engrossar o movimento. Milhares de pessoas já se punham em marcha, em direção à Praça dos Três Poderes. Ali iriam pressionar, com o objetivo de fazer valer a vontade popular, já que os representantes do povo, na realidade, de há muito não o representava.

Discursos inflamados, imprecações e palavras de ordem acabaram por insuflar parte dos manifestantes e a ordem logo saiu do controle, dando início a ações individuais de agressão e ataque ao patrimônio público e particular. Começou, então, um quebra-quebra desordenado em que se atacava tudo o que estivesse ao alcance das mãos, de um pedaço de pau ou de uma barra de ferro.

Foi nesse momento que, não se sabe bem como aconteceu, ouviu-se alguém esbravejando: “Abaixo a burguesia elitistaaaaaaa”! Em seguida, um mascarado atirou uma “bomba molotov” em direção a um esquadrão composto por policiais fortemente armados.

A resposta não se fez esperar. Os policiais trataram de aplicar seus meios de dissuasão e bombas de gás, balas de borracha e cassetetes, em profusão foram sentidos pelos manifestantes. Um capitão, possessom gritava: "Avançar"! Avançar"!

No meio da refrega, ouviu-se um estampido seco e, de imediato, um corpo caiu ao chão, num baque surdo e assustador. Ninguém conhecia o atingido. Nunca tinha participado de reuniões do Sindicato não era operário e nem filiado a qualquer partido do movimento.

No calor da refrega, ninguém viu de onde partiu o tiro assassino. Se do lado de cá ou do lado de lá seria assunto para um bom grupo de peritos discutir, em razão das evidências e das suposições colhidas, sabe-se lá como.

Resgatado pelo pessoal do “SUS”, num compartimento da mochila havia uma Carteira de Estudante com o nome da Escola, dos pais e do aluno.

Gilberto de Assis dos Santos. Era o Giba! Não houve festa nas Bodas de Prata. Só lágrimas, desespero, tristeza e horror...

Na segunda-feira, dia de aula de Sociologia, no “Diário de Classe”, enquanto anotava “ausência” para o seu aluno mais permeável,o professor perguntou à classe: “Alguém sabe porque Giba faltou hoje"?

Não obtendo resposta, abriu o livro, posicionou-se diante do quadro de giz e escreveu o título do tema a ser abordado naquela aula: “O Capital”, de Karl Marx...

Amelius
Enviado por Amelius em 06/08/2013
Reeditado em 06/08/2013
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