O portal-alçapão

São 8 horas da manhã, desço do ônibus – pois não gosto de ir de moto para o Rio - e sigo para a labuta. A razoável distância ele se apresenta e preenche meu campo de visão. Veste branco, um branco não tão alvo assim! Desbotado, com manchas enegrecidas de limo, mas ele está sempre lá, imponente e majestoso. Transponho-o e o cenário se repete: Colchões, colchonetes e papelões nas calçadas. Mendigos, prostitutas, cracudos, traficantes, travestis e pinguços pululam por todos os cantos. A nata da escória transita pela região como se ali fosse a “Meca” da vagabundagem.

O lugar exala um cheiro desagradável de urina, suor e álcool. Um odor acre se mistura ao monóxido de carbono e recende por todos os cantos. Em alguns momentos o ar puro circula, cortando com frescor o asco do ambiente.

Inúmeros bares estão cravados na região, cada qual com seus atrativos, com sua personalidade, com seus encantos. Grande parte deles permanece letárgico no período diurno, exceto os que servem almoço. Já os botecos, esses acolhem os vagabundos enquanto o sol brilha.

Saio para o almoço e o cenário permanece inalterado. Peço informação a uma jovem senhora e a mesma me orienta educadamente sobre qual direção tomar para encontrar o que procurava. Sua voz soa com pujança, seu pomo de adão se mostra saliente, ela (e) me fitava nos olhos, compreendi que estava diante do terceiro sexo. Registrei suas orientações, agradeci e prossegui.

O dia finda, o trabalho se encerra. Minha casa, meu computador, meus textos, minha esposa, meus cachorros me aguardam. Atravesso um bom pedaço em direção ao ponto de ônibus. A luminosidade diurna não mais existe, aperto os olhos e consigo enxergar o reflexo acanhado do piercing fincado no nariz da jovem noite que se anuncia. Os bares, antes comedidos, agora se apresentam luminosos, com neons vermelhos, azuis, verdes, negros – como onça a expor suas pontiagudas garras para caçada noturna. Os botecos parecem colmeias, continuam apinhados de operários a serviço da rainha “cachaça”.

Prossigo atravessando aquele caldeirão que já aquece em fogo brando. Rompo por entre o sopé do imenso portal que se estende para os lados e para a lua. Logo adiante, deparo-me com três ou quatro indivíduos agachados num canto de uma praça, próximo deles uma panela imunda fervilha sobre um improvisado fogo de lenha, fazendo borbulhar e transbordar o líquido nela existente. Na calçada, um tampão de bueiro encontra-se aberto, dentro dele há mochilas, cobertores, sacolas plásticas, canecas, latas...

De súbito, o analítico que é o coautor dos meus textos se apoderou de minha mente, dos meus olhos, dos meus sentidos. Passei a vislumbrar naquelas pessoas o que as próprias deixaram de ver e sentir a longa data: Eram pessoas como todas as outras, que em algum momento nutriram sonhos, ambições e perspectivas paras suas vidas, mas que se deixaram aprisionar no ilusório Oasis dos prazeres, das alegrias que, quando regadas pelo desregramento, aprisiona e ceifa sonhos. Algumas delas deixavam transparecer nítidos sinais de boa instrução, de avançada capacidade intelectual, mas estavam lá, paralisadas, com o mental e o emocional comprometidos, como se tivessem assinado um contrato vitalício com o desleixo, com o descompromisso e com a esbornia.

No dia seguinte refaço o percurso. O grandioso portal alvo continua lá, revejo as mesmas cenas, as mesmas sensações, os mesmos odores. Percebo a mesma energia.

Aquelas pessoas continuavam lá? Talvez não fossem as mesmas de ontem, não fossem os mesmos DNAs da noite anterior, nem as mesmas personalidades, tão pouco os mesmos corpos, mas com absoluta certeza eram pessoas com as mesmas sintonias, com frequências similares, com propósitos e objetivos em consonância.

Nas mãos de qualquer poeta com sintonia similar, que estivesse de mãos dadas com a boemia, esse cenário ganharia verniz e glamour. Entretanto, hoje optei por apresentar ao leitor esse sutil e, porque não dizer, etéreo sistema carcerário que se estende por várias cidades, por países e como metástase esta disseminado por todo o globo.

Vidas e sonhos ceifados, destinos que se emperraram naquele grandioso Oasis. Recanto da boemia, paraíso da esbornia. Cabe resaltar que Oasis, muita das vezes não passam de miragens.

Fui surpreendido por uma grandiosa algazarra que irrompeu o meu quarto e interrompeu minha digitação, eram amigos e amigas me convidando para sair.

- Vamos lá Marco? Disseram eles empolgados, quase em uníssono.

-Aonde? Perguntei com os dedos no teclado, de frente para a tela, para esse texto que você esta lendo.

Todos estavam alegres, sorridentes. Um deles esfregava as mãos exprimindo animação e soltou a voz. Dava para notar que o orgulho fazia parte daquele timbre.

-vamos para a Lapa!

Fechei o laptop e respondi.

Não! Não vou não! Hoje eu não estou legal.

Poucos segundo se passaram e retifiquei: “Ou melhor! Eu não vou porque hoje eu estou legal”.