Uma avó pra chamar de oma
 
No jardim, um pé de acácia-mimosa. Na floração, regalo das abelhas, o amarelo escondia as folhas acinzentadas. No quintal, ao lado da casa, um pé de araçá. Carregadinho, forrava o chão de vermelho. Cada um, na sua estação, disputando fazer a melhor festa para os sentidos. As cores, o perfume, o sabor das araçás maduras.
 
Cruzando a pontezinha de madeira sobre o riacho, eu lançava os olhos para a casa no alto. Um pontinho branco na janela. O algodão dos cabelos da minha avó materna. Emília. Achava lindo o nome da oma. Emília.
 
A oma passava a maior parte do dia sentada na cadeira de balanço ao lado da janela. Vista panorâmica para o banhado do Kabitschke e umas poucas casas do entorno. A maioria de madeira. Sempre arrumadinha, porém sem exagero. O cabelo em coque, que a tia Alzira arrumava com esmero antes de sair para trabalhar. A velhinha mais bonita do mundo. E a única avó que eu tinha.
 
Eu entrava na casa, ela largava um sorriso discreto. Perguntava pela minha mãe. E continuava batendo a nata numa pequena vasilha de louça até virar manteiga. Naquela época o leite era gordo. Os leiteiros deixavam na porta das casas em garrafas de boca larga tampadas com uma roda de papelão fino. Minha avó acumulava o excesso de nata e fazia manteiga.
 
Assim como fui crescendo, a memória da oma foi-se apagando. Gradativamente ia esquecendo o nome das pessoas, até chegar às próprias filhas, genros e netos. Devagar, foi deletando um a um, começando por aqueles que ela não via com tanta frequência, até restarem apenas os da casa. A tia Alzira, o tio Ewald, a nora tia Paula e o Ricardinho, que veio me desbancar do lugar de neto temporão.
 
A chegada do Ricardinho foi uma alegria só. O filho do filho mais novo. Um reizinho preencheu todo o espaço restante da casa. Imagino que o Netti, o pequinês da tia Alzira, deve ter ficado com ciúmes, embora não demonstrasse. Também fiquei contente. Assim que pude, corri para conhecê-lo. Um priminho para brincar e ver crescer.
 
A oma continuava a perder memória e tornava-se cada vez mais silenciosa, mergulhada em si mesma. Minha mãe atribuía isso às chicotadas que a vida lhe reservara. O primeiro filho homem morreu nenezinho. O segundo, adolescente, sucumbiu à gripe espanhola em 1918. Oito anos depois ficou viúva, com sete filhos para criar. O mais novo com dois anos de idade. Minha mãe, com treze, passou a receber o favor das freiras do Colégio da Divina Providência. Para não ter de abandonar a escola paga, estudava num período e ajudava na cozinha do convento no outro. A oma começou a lavar roupas para fora.
 
Minha mãe um dia deparou-se com a visão do irmão Octávio, cuja vida a gripe espanhola havia ceifado. Vestido com o uniforme da escola de ginástica ele teria dito Joanita, cuide bem da mamãe. Impressionada, ela deixou a escola para ajudar a oma em casa. Só a isenção da mensalidade escolar não bastava. Precisava colocar dinheiro no orçamento familiar também. Decidiu então apanhar e entregar as roupas que a minha avó lavava e passava. À revelia da oma, aumentou os preços. Depois, foi trabalhar em casa de família. Ouvi-a dizer muitas vezes: minha mãe tirava da própria boca para colocar na boca dos filhos, sugerindo que a oma sofreu fome, para que os filhos tivessem o que comer.
 
No final da década de 1940, duas filhas adoeceram. Rins que não funcionavam direito. Os recursos da época não deram conta da força da doença implacável. A tia Laidinha e a tia Lucinda partiram com diferença de meses uma da outra. A primeira deixou quatro meninos órfãos e a segunda, três.
 
O Ricardinho já tinha feito quatro aninhos. Minha avó, dias depois, faria oitenta. Resolveram fazer uma festa. Uma festa para a oma? A família toda reunida? Tios e primarada? Parecia que a festa era para mim.
 
Entrei em janeiro mais feliz do que nunca. Além das férias escolares, o aniversário da oma. Um verão para não se esquecer. E de fato nunca mais o esqueci. Está presente na minha memória, como se fosse ontem. Saudade nenhuma.
 
Minha mãe, eufórica, mandou-me falar com o Armando Heyn, nosso vizinho de rua, para anunciar o aniversário no Despertador da Cidade, programa de rádio do Abel Scuissiato, do qual ele era o sonoplasta. Não esperei o Armando chegar a casa. Peguei o ônibus e fui à Rádio Cultura. O Armando ainda estava na mesa de sonoplastia. Entrei.
 
- Armando, sábado é aniversário da minha avó. Peça para o Abel colocar na pauta e dedicar uma música a ela. Uma valsa bem bonita.
 
O Armando, boa praça, disse pode deixar. Anotou tudo direitinho. E levou um pito da locutora da hora, do outro lado do vidro, porque se distraiu comigo e não mudou o áudio do pick-up no ar para o que estava com o disco do jingle seguinte.
 
Na sexta-feira à tarde, véspera do aniversário, minha mãe pediu que eu levasse uns quitutes que já estavam prontos, para adiantar o expediente do sábado. Assumi a tarefa com alegria. Na casa, a tia Alzira e a tia Paula preparavam doces e salgados. A Oma falou, da sua cadeira de balanço, que o tio Ewald estava de cama, doente. Logo hoje, pensei. Amanhã estará melhor, torci.
 
No sábado, ao amanhecer o dia, acordei com palmas no portão. Depois, vozerio e choro. Minha mãe chorava. Levantei-me depressa e fui ver o que estava acontecendo.
 
- O tio Ewald morreu - minha mãe disse chorando, olhando para mim.
 
Desmontei. Devia ser um pesadelo. Custou-me acreditar. Eu estava tão feliz, ansioso por esse dia que rompia azul e ensolarado lá fora. De repente tudo mudou, sem chance de reversão. De que valia agora o azul do céu e o sol da manhã, se o meu tio preferido não os desfrutaria e jamais voltaria a ver um novo dia raiar? E se não haveria mais a festa do aniversário da oma?
 
Voltei para a cama em silêncio. Permaneci longo tempo encolhido nos meus dez anos de idade, pensando na festa que não ia mais acontecer. Àquela hora o Abel Scussiato provavelmente estaria anunciando o aniversário da minha avó, junto com o de outros aniversariantes do dia, enquanto o Armando segurava o disco no pick-up, pronto para soltar assim que o locutor terminasse a lista. Com certeza a valsa mais linda do mundo para a velhinha do coque branquinho que eu via de longe, sentada junto à janela. A minha oma.
 
Pensei no meu tio morto. No Ricardinho órfão. Já teriam contado a ele? Como ele receberia a notícia, na inocência dos seus quatro anos? Tão novinho e já confrontado com a morte. E imaginei a minha avó enfrentando mais uma tragédia na vida. No dia dos seus oitenta anos, o filho caçula e único homem vivo, partindo de repente, ainda jovem, sorrateiro na madrugada. Sem tempo para um abraço, um beijo. Ou um mero auf Wiedersehen Mama. Auf Wiedersehen Sohn.
 
O velório foi na casa. O caixão estilo europeu, da Funerária Stephan, na sala. Os bolos, docinhos e salgados foram servidos aos poucos. Minha avó riscou meu tio da memória. Não era o filho dela dentro da urna.
 
- Tem um homem morto na sala - ela dizia na sua cadeira de balanço - estava doente. Ontem tomou chá o dia inteiro.
 
Na madrugada quente, o vizinho alcoólatra do outro lado da rua surtava com sua crise de delirium tremens. Andava de um lado para outro no jardim ora falando ora gritando frases desconexas. Às vezes parava num canto e gesticulava como se discursasse num púlpito.
 
Três meses depois, minha vó sofreria seu derradeiro abalo. No limiar de uma noite fria e garoenta de outono, a tia Alzira acidentou-se no trânsito do centro da cidade. Teve morte instantânea.
 
A oma foi morar com a tia Miloca. Apesar do esforço e boa vontade, faltava a essa filha a paciência da tia Alzira nos cuidados com a velhinha, agora com a memória totalmente apagada. Já não reconhecia ninguém. E também eu quase não a reconhecia. Nunca mais a vi de coque. E a janela, junto à qual ficava a cadeira de balanço, não era a mesma. Não mais a vista panorâmica para o banhado do Kabitschke. Nem as casas de madeira dos alemães. A vida se extinguia.
 
No outono seguinte, a missão da vó Emília aqui neste plano chegava ao fim. Passou para o outro lado da vida numa tarde de domingo. O velório foi lá em casa. A cabeça branquinha no caixão escuro. O rosto abatido, todavia sereno, parecia que guardava um discreto e último sorriso para mim.
 
Ainda guardo bem viva a lembrança do pontinho branco na janela da casa lá no alto, que eu avistava quando cruzava o regato pela tosca ponte de madeira. Era o cabelo em coque da minha avó na sua cadeira de balanço, batendo nata até virar manteiga. Uma avó linda, pra chamar de oma.

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N. do A. - Em dezembro de 2020, o Ricardinho completou 64 anos e vive em Maracaju, Mato Grosso do Sul, onde tem uma empresa de informática. A tia Paula morava com ele e faleceu em janeiro de 2017 com 90 anos.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 16/07/2013
Reeditado em 21/05/2021
Código do texto: T4389390
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