MAIS QUE APENAS VINTE CENTAVOS

Não. Não se trata apenas de uma questão monetária. Muito menos de meros vinte centavos. É muito mais. O que se vê nas ruas é uma questão de princípios, de moralidade, de autorrespeito, de consciência. Mais ainda que isto: pode-se resumir a uma questão de indignação.

Houve um tempo na história deste país em que não era permitido se manifestar, sob pena de exílio, prisão, “suicídio”, cassação, “acidentes automobilísticos”, tortura. Houve um tempo negro na história deste país em que as vozes eram caladas, as reuniões vigiadas e censuradas.

Em contrapartida, também houve um tempo na história deste país em que a UNE realmente representava os estudantes, portando-se como a sua voz. Em que se podia confiar em algumas pessoas no Congresso. Essas pessoas, mesmo sob pena de perseguição, erguiam sua voz e bradava em nome do povo. Eram capazes de levar milhares, milhões às ruas, com o rosto pintado, orgulhosamente, de verde e amarelo, cantando “quero falar de uma coisa, advinha onde ela anda...”. Era o eco à Marselhesa tupiniquim, autoritariamente calada, quando ousou conclamar os sem-voz, gritando “vem, vamos embora, que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Mas, como disse, mesmo que aos sussurros, uma das vozes sufocadas à época, “apesar de você, amanhã há de ser outro dia...” veio o outro dia. O problema é que veio e, junto a sua calmaria, apareceu a letargia, o comodismo. Aconteceu o sossego, a ilusão da felicidade eterna, a falta de cuidados com o presente e o futuro, como se fosse possível viver “no mundo de Alice”. O povo manteve-se deitado em berço esplêndido. E o que, aparentemente, era passado, voltou; o que supostamente eram cinzas, renasceu. E com ele vieram as tentativas de se calar a imprensa, o Ministério Público. E o povo, principalmente os jovens, se mantinha calado, descrente ou mesmo desconhecedor de seu poder, de sua força.

As velhas vozes da MPB não calavam mais no coração dos jovens de então, não refletiam mais os anseios do povo, como se fossem retrógradas. Aparentemente, ninguém ouviu Elis contando, não das coisas que aprendeu nos discos, mas sim como viveu e tudo o que aconteceu consigo. Cantava-se, no torpor da bebida, nas mesas, nos bares, batucando em caixinhas de fósforos, sem saber quem são as Marias e as Clarices.

“Mas é claro que o sol vai voltar amanhã”. E ele virá por meio do grito dos outrora calados, da manifestação dos cansados, da revolta dos até então calmos, do repúdio dos agora envergonhados, dos então não representados pelos políticos. E ficará claro que não se trata apenas de um grito por vinte centavos. Apenas contra a PEC 37. Apenas contra Marcos Feliciano e a cura gay. Apenas contra a Copa. Apenas contra um sistema público de saúde falho. Apenas contra a falta de segurança. Trata-se de mais. Trata-se de um grito de alerta. Trata-se de um escarro da sociedade de bem, um vômito, um repúdio a tudo o que lhe atinge o direito de ir e vir, de ser, de estar. De se manifestar. De amar. De estudar. De se divertir. De se sentir pessoa, “porque gado a gente ferra, tange e mata. Mas com gente é diferente”. E então “o jardim vai florescer, esbanjar poesia”. E o brado retumbante de um gigante adormecido, iniciando-se com “um simples soluçar de dor, num canto do Brasil”, vai se espalhar e contagiar a todos que, até então, apenas viam “a banda passar, cantando coisas de amor”.

Então, talvez consigamos responder aos questionamentos de Fernando Brant: “O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé? O que vocês fariam pra sair dessa maré? O que era sonho vira terra. Quem vai ser o primeiro a me responder? Sair dessa cidade, ter a vida onde ela é?” Não, Fernando, mil vezes não. Não precisamos mais sair da cidade, do país. Porque “o canto dessa cidade sou eu”. E para mim, para você, para nós ninguém mais dirá “cale-se”. Responderemos nas ruas, sem nos misturarmos aos aprendizes de vândalos de plantão, apenas com nossa incômoda presença. E todos passarão a “sonhar mais um sonho impossível, e o mundo vai ver uma flor brotar do impossível chão”.

Pabinha - 25/06/2013

Pabinha
Enviado por Pabinha em 25/06/2013
Reeditado em 16/05/2023
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