No tempo dos ladrões de galinha
 
Houve um tempo em que o furto de galinhas era um dos delitos mais comuns na cidade. Pouco se ouvia falar de assaltos a mão armada, arrombamentos, furtos de veículos. Muito esporadicamente, no entanto, a população era surpreendida e chocada com crimes graves e bárbaros, como o do taxista assaltado, morto e mergulhado junto com o seu veículo na Represa do Vossoroca, o assassinato do gerente da Telespark, no escritório regional da empresa, e o monstruoso crime contra o menino Marquito, estuprado e estrangulado pelo vizinho e amigo da família.
 
O dia ainda não havia clareado. Bateram palmas no portão. Minha mãe foi atender. Estacionado em frente à casa uma viatura da polícia civil. O homem que batia identificou-se como agente da Delegacia de Furtos e Roubos.
 
- A senhora tem galinhas?
 
- Sim, eu crio galinhas. Por quê?
 
- Detivemos um homem com um saco cheio de galinhas. Ele nos trouxe até aqui dizendo que roubou seu galinheiro.
 
Minha mãe quase desmaiou. Ela criava suas penosas com muito amor e dedicação. As bichinhas retribuíam pondo ovos de qualidade diariamente.
 
- Então o senhor veio devolvê-las?
 
- Não agora. A senhora deve comparecer à delegacia após o almoço. Precisamos do seu depoimento para indiciar o meliante.
 
- Mas deixe as galinhas, prometo que vou prestar depoimento hoje mesmo, sem falta.
 
- Infelizmente não é possível. A senhora confira seu galinheiro, veja quantas aves faltam e à tarde pode ir buscar as que estão conosco, e que constituirão a prova material do indiciamento.
 
O homem embarcou na viatura, onde havia outro, e foi embora com o ladrão e as galinhas. Minha mãe correu para o galinheiro assim que a luz do dia tornou-se suficiente para a contagem e concluiu que faltavam oito.
 
Logo após o almoço fomos Delegacia de Furtos e Roubos, no centro da cidade, resgatar as poedeiras, imaginando que seria tarefa fácil. Pura ilusão.
 
Assim que chegamos, minha mãe pediu para ver as galinhas. Um agente nos levou até uma pequena cela. Lá estavam apenas quatro das oito que faltavam no galinheiro. Presas, atrás das grades, sem dever nada.
 
- E as outras onde estão? - minha mãe perguntou.
 
- Com o ladrão só havia estas quatro. São suas?
 
- São minhas, mas faltam quatro.
 
- Sinto muito, só recuperamos estas.
 
Dali fomos conduzidos a uma sala de espera para aguardar a vez de a minha mãe depor. E dê-lhe chá de cadeira. Algum tempo depois veio uma moça avisar que haviam telefonado do Tribunal de Justiça e que teríamos prioridade no atendimento. Que baita privilégio, pensei.
 
O telefonema partira do meu cunhado, que trabalhava na secretaria daquela corte. Não sei se o pedido dele foi levado em consideração, porque ainda tivemos de amargar uma longa espera, até que finalmente pudemos entrar na sala do delegado.
 
Assim que nos sentamos, trouxeram o larápio. Um homem calvo, de pele amarelada, beirando os quarenta anos.
 
Primeiro o delegado fez algumas perguntas à minha mãe. Ela respondia e o escrivão datilografava numa velha e negra máquina de escrever. Depois foi a vez do preso, que obviamente confirmou o furto, porém não precisou o número de galinhas furtadas. Disse que foi pegando e enfiando no saco, sem contar. Desse modo, ficamos sem saber onde foram parar as quatro faltantes.
 
Encerrada a parte burocrática da questão, voltamos para a sala de espera. Logo veio o mesmo homem que havia nos atendido na chegada, com um saco de estopa com as galinhas. Temendo que houvesse sumido mais alguma, minha mãe apressou-se em examinar o conteúdo e constatou que tinha mesmo quatro dentro do saco.
 
Fora da delegacia, a tarde morrendo, minha mãe lembrou que não poderíamos pegar o ônibus com o saco de galinhas cacarejantes. Também ficaria constrangida em tomar um taxi. Portanto, pé na estrada.
 
Fomos vencendo os cerca de cinco quilômetros da Praça Carlos Gomes até nossa casa, no início do Pilarzinho antigo, revezando-nos com a carga. Ora comigo, ora com minha mãe. E ela lamentando-se pela tarde perdida e pelo destino das galinhas que não estavam conosco, e que provavelmente iriam ser o prato principal na mesa de alguém no próximo domingo. Por outro lado, ela sentia-se feliz em levar de volta para o lar as outras quatro sãs e salvas.


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N. do A. - Na ilustração, Galinhas de Benedito José de Andrade (Cabreúva - SP, 1906 - São Paulo - SP,1979)
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 06/04/2013
Reeditado em 03/09/2021
Código do texto: T4226612
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