A Vida - Parte II

Mas como eu disse na primeira parte desta crônica, temos de ser artistas para encarnar todos os papéis que nos apresentam. Assim, após deixar o Bar e Café do senhor Coelho eu fui trabalhar na Fábrica de Cola Campineira, dos senhores Garcia e Antônio Vaccari, que ficava em frente à minha casa na Rua Carlos de Campos. Eu tinha muitos amigos que lá trabalhavam. Devo dizer que o serviço era com carnaça, uma pele grossa que se retira do couro do boi, e que era matéria prima para fazer cola para colar madeira, muito usada na época.

O serviço me lembrava, e muito, um filme que assisti chamado “Como Era Verde o Meu Vale” (com Walter Pidgeon, Maureen O´Hara, Donald Crisp, Barry Fitzgerald, Roddy MacDowall e com direção de John Ford). Passava-se na Irlanda e retratava o dia a dia dos trabalhadores das minas de carvão. Foi o vencedor do Oscar naquele ano de 1941.

Voltando ao meu novo emprego, o serviço era pesado e sujo. Com empregados contados para todas as tarefas. Tinha cerca de oito menores entre 12 e 14 anos, que faziam o serviço leve, isto é, tirar a cola em tabletes secas e ensacá-la, em sacas de 25 quilos. Comecei a trabalhar entre os menores. Depois de alguns dias o Sr. José, que era o gerente dos trabalhos, me disse; “Você já tem 15 anos e nós estamos com falta de dois maiores que foram embora. Gostaria que você fosse experimentar lavar os tachos onde foi cozida a carnaça esta noite. Eles já estão frios. O serviço não é pesado e é bem simples. É só tirar o resíduo de carnaça que ficou depositado no tacho. Tire esse resíduo com uma pá e jogue na vagoneta, que os trilhos levam até a beira do tacho. Isto até a hora do almoço. E á tarde você carrega os dois tachos que você limpou com carnaça (recém tirada da batedeira por outro empregado, que a trazia em uma vagonete maior)”.

Então, o Sr. José me mostrou como devia manejar o forcado (similar a um grande garfo) e acrescentou: “Você é forte e vai gostar da mudança. O senhor Vaccari já me autorizou a lhe pagar o ordenado de maior de idade. Se você não se adaptar fale comigo e você pode voltar para o lado da molecada”.

Naquela tarde o Sr. José me deu autorização para ir até a Sapataria Portuguesa, na Rua 13 de maio, perto do Bar onde eu trabalhei quatro anos. Lá tirei as medidas para uma botina de atanado, própria para o trabalho na umidade, que durava em média de 6 a 7 meses. Fui pegando o jeito da coisa e depois de um mês eu não queria mais outro serviço.

Mas também não poderia mais voltar para o trabalho da molecada, pois quando eu lhes disse que iria trabalhar no meio dos maiores eles me disseram que eu não iria aguentar o “baque” e abriria o bico. Então fiz de tudo para ficar e ainda fazia pose com o meu sapatão todo ensebado.

Mas voltando ao trabalho junto com os menores lembro-me que num dia em um quadro onde a cola era depositada para ir à geladeira, para solidificar, e eu que estava preenchendo esses quadros, deixei passar um que não estava completo com a cola líquida. Então, por acaso, o senhor Vaccari viu esse fato e me chamou a atenção, dizendo: ”nunca faça assim, pois quem não tem competência não se estabelece”. Fiquei envergonhado de minha falha, mas resolvi mostrar ao Senhor Vaccari que eu tinha qualidades. Devo acrescentar que o Senhor Antônio Vaccari era muito educado, honesto e sabia valorizar os seus empregados. Ele era o único empresário que na época dava abono de Natal a todos os seus funcionários. No pagamento de dezembro recebíamos dois envelopes com os dois pagamentos, além do seu cumprimento com os desejos de Boas Festas.

Eu como tinha só quatro meses de serviços na Fábrica de Cola não esperava um abono integral. Porém, ele nada disse sobre isso, mas no envelope estava escrito: “O seu abono de Natal corresponde a seis meses como menor e a seis meses como maior”. E acrescentava: Feliz 1950.

Entramos no ano de 1950. A fábrica de Cola estava com muita atividade visto que as indústrias que eram fortes compradoras de nosso produto até aumentaram suas compras. Todos apostando no pós-guerra. Havia muita exportação de cola e, o sebo de primeira, que depois de sólido parecia uma margarina, não chegava a fazer estoque. Todas as fábricas de sabão vinham disputar o precioso produto. Também o sebo de segunda, e que era de cor marrom, também começou a ter grande saída. Só a Fábrica de sabão do Milani, localizada na Vila Industrial, levava 15 tambores do produto todas as semanas.

Um dia eu, como um empregado interessado nos negócios da fábrica, falei ao Senhor José Popi, nosso gerente, que era o químico da fábrica, por que não aproveitar também aquele resíduo dos tachos que eu lavava todas as manhãs, que no mínimo dava uns 100 quilos cada tacho? Era só arrumarmos um tacho e colocar os resíduos de uma semana e colocar para ferver, uma vez que a caldeira da fábrica era suficiente para mais esta empreitada.

Devo dizer que já estávamos em 1952. Eu fiz esta proposta ao senhor José por que éramos muito bem pagos, com ordenados superiores aos dos três curtumes de Campinas (Cantúsio, Firmino Costa e a Curtidora Campineira). O senhor José Popi gostou da ideia e de fato o resíduo da carnaça, que já tinha dado o liquido da cola, passou a ser armazenado.

E todas as semanas uma empresa comprava todos os tambores daquele produto que antes era queimado junto com a casca moída de barbatimão, para a alimentação da caldeira.

O senhor Popi um dia me disse que já havia pensado nisso, mas a minha sugestão o animou a concretizar a obra. Mesmo que o produto fosse barato, acredito que dava para pagar a conta de água utilizada pela fábrica. Mesmo com um poço artesiano, era necessário um consumo de água encanada da rede urbana.

Mas eu já ia entrando, naqueles dias, nos meus 19 anos e pensava no meu futuro. E o meu sonho era entrar na Cia Mogiana de Estradas de Ferro, para o serviço de locomotivas. Já em 1954, com vinte anos e livre do serviço militar, pois fui dispensado no Ginásio do Botafogo, por excesso de contingente, pelo tenente coronel Serafim Miguéis. Lembro-me do tenente dizendo: “Vocês da letra A não fiquem muito alegres não, pois vocês estão aptos a servir a Pátria, e no caso de necessidade serão os primeiros a ser chamados.”. Mas ali mesmo, conversando com um sargento ele me disse: “O coronel fala todo ano a mesma coisa, mas isso nunca aconteceu..”. Ai fiquei mais tranquilo. Mas voltando à Fábrica de cola, o serviço corria normalmente.

Em meados de 1954 eu fui chamado para comparecer à Cia Mogiana pelo meu pai que ainda trabalhava e era torneiro mecânico nas oficinas da Cia. Ele me disse para ir lá e para falar com o Senhor José Miranda Solano, chefe de depósito, que me deu uma carta para levar até o escritório da Cia Mogiana, para ver o que seria necessário para a minha efetivação como funcionário da ferrovia. Apresentei-me lá na Rua Visconde do Rio Branco. Porém, para a minha decepção, o chefe do escritório, muito educadamente, me disse: “O Senhor Miranda deve estar ficando maluco. Com esta mesma carta já vieram duas pessoas, e a vaga de Benedito Miguel (a pessoa que havia saído) já foi preenchida há um mês.”. Então nada feito por enquanto.

Os dias foram correndo. Já estávamos em 1955, quando o meu pai me disse: “O senhor Miranda está de licença e o Senhor José Pedro Gomes está no lugar dele. Então eu falei com ele a seu respeito. Já que você está de férias, vá lá à Cia Mogiana, ali pelas 13h00 e converse com ele..”.

Lá chegando fui até o escritório do depósito de máquinas e me encontrei com o Senhor José Pedro. Ele me pareceu muito honesto e sincero, e me disse: “Venha comigo que vou lhe mostrar uma locomotiva que está prestes a sair de viagem..”. Então ele abriu o compartimento da fornalha e me disse: “Veja o que o foguista tem de fazer. Tem de manter o manômetro (indicador da pressão da caldeira) perto daquele risco vermelho, que é para o trem não parar. E olhe atrás de você toda esta lenha. Quando o trem chega ao final da viagem, ela já terá ido para a fornalha. E olhe são 22 metros (cúbicos) de lenha. Você está pronto para encarar esta tarefa? Se você estiver, e os seus documentos estiverem em ordem, leve esta carta ao escritório central e pegue uma ficha lá e vá à Rua Barreto Leme fazer os exames médicos. Mas leve esta carta fechada e só mostre ao médico, que você já será empregado da Cia Mogiana de Estradas de Ferro..”.

Fiquei encantado com a firmeza das palavras do Senhor José Pedro. E realmente tudo aconteceu como ele me disse, pois quando cheguei ao escritório central, a pessoa que me atendeu me disse: “ O Senhor José Pedro Gomes ligou para que lhe déssemos esta ficha”. O médico abriu a carta do senhor José Pedro e só me perguntou alguns dados e me deu um atestado de estar em perfeitas condições de saúde, e disse: “Volte aqui quando você for maquinista e boa sorte na nova carreira..”.

Mas voltando ao meu tempo na Fábrica de Cola, como já tive a oportunidade de comentar, eu era menor de idade, mas muito mais forte que alguns homens que lá trabalhavam. Como também já relatei com 15 anos eu fazia o trabalho de maior, lavando dois tachos de carnaça de manhã e à tarde carregando-os com carnaça limpa e pronta para fazer cola.

Num dia, quando eu já estava com 16 anos, o Guilherme Bartus chegou até mim e disse: ”..Eu preciso de um parceiro para pegar uma tarefa depois do trabalho e estudando todos aqui vi que você seria a pessoa ideal para essa empreitada. Não será como sobre tempo. Eu vou fazer um trato com o Senhor José Popi e vamos ganhar por cada tanque de carnaça que tirarmos..”.

Os tanques ficavam ao relento, mas tinha iluminação e era um trabalho de urgência. Ganhávamos 7 horas cada um por tanque.

Analisei bem a proposta do Guilherme. Vi que era um pouco pesado, mas meu pai estava com o pagamento atrasado na Cia Mogiana, onde trabalhava como ferramenteiro e tudo que eu ganhasse seria de grande utilidade. Naquela época, além do meu pai, só eu trabalhava de forma remunerada, pois meu irmão Laerte estava começando como aprendiz de barbeiro, sem remuneração.

Descrever o Guilherme Bartus, meu companheiro de trabalho, era assim: 25 anos, filho de alemães que estavam no Brasil há 30 anos. Era forte como um touro, atlético. Era educado e sempre estava de bem com a vida. Uma pessoa calma. Sua vontade era trabalhar.

Em nove dias tiramos os 18 tanques de carnaça, da oportunidade de trabalhar a carnaça que estava amontoada fora deles. Realmente foi uma proeza visto que cada tanque tinha 15 mil quilos de carnaça. Esse seria um papel adequado para Burt Lancaster ou para Sterling Hayden. Ganhamos um dinheiro merecido. Mas foi uma proeza que eu não tinha vontade de repetir.

Pensei que ninguém fosse se lembrar disso. Mas num dia quando falei com o senhor Antônio Vaccari, em setembro de 1955, que eu iria entrar na Cia Mogiana, primeiro ele me deus os parabéns. Eu estava de férias.

Ele me deu um abraço apertado e disse; “Quando você for levar os papéis na Cia Mogiana venha aqui que eu te darei uma carta de apresentação..”. E acrescentou: “..Você está preparado para qualquer serviço. Não pense que eu me esqueci do que você e o Guilherme fizeram daquela vez. Vocês nos livraram de um grande prejuízo..”. Eu lhe afirmei que era nossa obrigação fazer tudo o que estivesse á nossa disposição para o bem da Fábrica que sempre reconheceu o nosso esforço. Ainda lhe disse: ”Eu voltarei a conversar com o senhor. No dia 10 de outubro iniciarei minhas atividades na Cia Mogiana..”.

No dia 9 de outubro de 1955 eu, com quase 21 anos, fui até o senhor Vaccari que me recebeu muito cordialmente e me disse: “Aqui está a carta de apresentação para a Cia Mogiana..”. Ele ainda me disse: “Leia para sabermos se está bom assim..”. Ai eu vi que aquele homem cordial e compenetrado, que era também enérgico quando a situação assim o exigisse, assim escreveu: “ Aos Senhores diretores da Cia Mogiana: Estou apresentando o Senhor Laércio Rossi que foi meu funcionário por 6 anos. Ele é uma pessoa honesta, pontual e muito humana. Ele luta pela empresa que o tem sob sua bandeira. Acredito que na Ferrovia ele tem um vasto campo para progredir. Os senhores estão recebendo um funcionário muito preparado para vencer todos os obstáculos que a carreira de locomotivas exige. E eu estou perdendo alguém que antes de pensar em si pôs a minha empresa em primeiro lugar..”.

Quando eu terminei de ler a carta vi que não poderíamos falar nada, pois ambos estávamos emocionados. Um forte abraço falou por nós.

No dia 10 de outubro de 1955 eu era mais um daqueles a quem tanto admirava, que trabalhavam na Cia Mogiana de Estradas de Ferro.

Apresentei-me no depósito das locomotivas, com entrada pela Rua Pereira Lima.

O guarda do portão me perguntou: “Onde o senhor pensa que vai?”. E eu disse a ele, com o peito estufado: “Vou começar hoje como foguista da Mogiana”. Então ele me disse, com um ar muito amigo: “Muita lenha e carvão o senhor terá de queimar para chegar a ser foguista..”, e me autorizou a entrar. Então eu primeiro atravessei o barracão onde ficavam as “Montanhas Americanas”, das Henschel alemãs e das Malet, também americanas. Uma longa fila de locomotivas de grande potência, pois rebocavam 500 toneladas cada uma. Andei mais um pouco e fui ter com o feitor do depósito, o Senhor Geremias, responsável pelas entregas das locomotivas que iriam para a linha. Ele me cumprimentou e disse: “Até que enfim a Mogiana ajustou alguém fisicamente pronto para trabalhar..”. E continuou: “Acompanhe-me que eu te levarei ao escritório do depósito e te apresentarei ao escalante.” Ai, depois da entrevista com o Senhor Marculino Pereira, que era o escalante, ele me disse, num português lá da Santa Terra: “Antes de te escalar na linha tu vais aprender, aqui no depósito, como fazer fogo numa locomotiva. E não penses que é fácil azeitar uma locomotiva, abastecê-la de água, e principalmente de areia. Tu vais ficar no depósito uns 15 dias. Depois tu vais trabalhar numa manobra. Então, depois de tudo isso, se estiveres já ambientado com o serviço, tu poderás ir para a linha como ajudante de foguista..”. Ele ainda acrescentou: “Cuidado com os maquinistas das manobras, pois são todos velhos e cansados. Muito respeito com eles.

Tem alguns com quase 50 anos de Mogiana e não se aposentam, pois ainda estão a esperar que eu os escale para “puxar o verniz”, como se diz na linguagem da ferrovia quando se conduz trens de passageiros.”. E acrescentou: “Dentre esses maquinistas temos o Pedro Franqueiro, o Ernesto Antônio, o José Maria Rosa, o Oscar Filipe, O Jairo Vieira da Rocha, o Antônio Conceição, o Mário Geraldo de Almeida Vidal, o mais novo é o Reinaldo Costa Figo, o que trabalhava com a maquininha 980, que faz o serviço dentro das oficinas. Justo o mais novo já tentei convencê-lo a ir para a linha, mas ele não quer. Deve ter entrado na carreira contra a sua vontade, pois o seu Pai, o Figo velho foi um grande maquinista e tem ainda o José e o Arnaldo, irmãos dele, que são maquinistas..”.

E assim, foi o meu começo na Cia Mogiana de Estradas de Ferro.

Laércio
Enviado por Laércio em 30/03/2013
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