Eu já me contentaria com as vogais.

Não me lembro como foi o meu processo, mas sempre foi apaixonada pela conduta humana. O fazer histórico, as produções artísticas, as transformações, os sonhos que poderiam vingar. Muitas vezes sonhos cruéis decidiram destinos. Tudo pelo poder. Ora, podre poder! Casos, palavras, atitudes, irreverência ... tudo sempre mereceu o meu olhar atento junto da necessidade de respostas. E não poderia ser qualquer resposta. Deveria haver fundamentação. Sempre fui apaixonada pelos grandes debates, pelo olhar para a construção do tempo de forma metódica e sempre com muita paixão. Era necessário construir a vida, mas vida em plenitude e em movimento.

Meio às escondidas, fiz a inscrição para a recém-nascida FUVEST – isso em I976. A Fundação Universitária para o Vestibular seria o caminho para se chegar à tão cobiçada Universidade de São Paulo. Foi dessa forma porque o meu pai já estava chegando à exaustão de tanto falar que eu deveria cursar Economia ou Administração de Empresas.

Passei no vestibular. Coisa doída foi enfrentar aqueles anos todos de universidade, com o mínimo dinheiro e dificuldade extrema de aprendizagem, além das longas distâncias. Mas eu jurei: eu iria chegar lá. Teria presença naquele tempo das mudanças urgentes e necessárias. Minhas aulas seriam fundamentadas no respeito, no olho no olho, na vibração de pessoa jovem querendo construir e fazer o sol brilhar para todos. O sol deveria se transformar num guia, numa primavera que faríamos nascer: uma sociedade mais humana, muito mais bela, rindo feliz das suas conquistas e capaz de caminhar firmemente para o progresso em todos os campos do conhecimento.

Eu fui. Caminhei com decisão. E fiz tudo aquilo que acreditava. Ganhei admiradores, mas a questão não era essa. Eu queria admiradores pelas causas sociais, culturais e políticas. Um Brasil merecedor dos seus filhos, um lugar profícuo para uma liberdade consistente e vida plena.

Mas eu não esperava – mesmo. Não esperava ver, nas cadeiras escolares, alunos babando de dormir, mandando mensagens pornográficas para outros, desenhos obscenos, dizeres grosseiros. O pior: a soberba. E reclamações imbecis e outras manifestações de sandice. Até tentei ter paciência, tentei compreender, rir junto, deixar prá lá, mas tempo é preciosidade e espaço de aula é sagrado para ser perdido com banalidades.

A luta foi gigantesca nas três décadas de sacerdócio, mas, no final da minha carreira profissional, eu, desgastada e enfraquecida, com o emocional pedindo água, já me contentaria com as vogais.

Se eu estivesse tratando da Queda do Muro de Berlim, por exemplo, que alguém exclamasse um “a”. Como se dissesse: “Ah, foi assim? E depois, como ficou?” já estaria bom.

Se eu tentasse a contextualização de uma letra musical de Adoniran Barbosa e a urbanização de São Paulo, e a maloca sendo destruída para a construção de um “adifícil arto” e as consequências sociais, que eu ouvisse um “ééééé????” Um só já estaria bom.

Na semana seguinte (não precisaria ser tudo num dia só), quem sabe se eu tratasse da ascensão de Hitler ao poder... alguém poderia exclamar um “iiiiiiiii”, como se dissesse: “pronto, o mundo entrou pelo cano”. Só essa exclamação e conclusão já estariam de bom tamanho.

No mês seguinte (porque a gente não pode querer tudo), eu falando dos movimentos culturais de juventude, da efervescência dos anos 60, quem sabe um “oh”. Um só já estaria bom para essa mortal.

E depois, na hora de apresentar a crueldade das ditaduras na América Latina, um “uuuuu”. Como se dissessem: “agora compreendi. A história melou”.

Se no início eu tentava mudar o mundo através do conhecimento, do debate, do respeito, dos questionamentos, da participação, provocar reflexões e construir um projeto e nação... no final ter que me contentar apenas com as cinco vogais é sinal de que envelheci, encarquilhei, entrei na fase da senilidade ou quase isso.

Sejam felizes, rapazes e moças. Com a sua tecnologia, em plena modernidade líquida.

Passando pela porta de um colégio outro dia, assustei ao ler no latão de lixo, situado bem defronte à porta: “deposite seus sentimentos aqui” e uma seta apontando a abertura da lata.

Me senti mais senil ainda. No bom italiano: “La vecchiaia è bruta ma me fa piacere”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 26/03/2013
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