A selva

A SELVA

Tarde de sexta-feira. Nuvens plúmbeas avançam sobre a cidade, como as naves alienígenas do filme Independence Day. Não prenunciam boa coisa, mas eu tenho uma missão a cumprir. Preciso levar meu neto ao médico do outro lado da cidade. Preso à cadeirinha, no banco de trás, seu sorriso é o combustível que me levará à lua, se necessário. Não tenho pressa, pois me dei um bônus de uma hora além do tempo normal para esse percurso. Por isso o trânsito pesado não me surpreende. Macaco velho, conheço os galhos da árvore. Mas, no primeiro cruzamento, um macaco mais novo, pilotando uma Toyota Hilux e pendurado num celular, avança o sinal vermelho e me obriga a frear bruscamente o carro, assustando meu inocente passageiro. Dois minutos depois, um ônibus para abruptamente fora do ponto, ocupando uma pista e meia e paralisando o fluxo de veículos. As buzinas dos impacientes uivam nos mais diferentes tons.

Avenida Contorno. Passo de tartaruga. Do sinal verde para o vermelho, adianto cinco metros. Perto da Savassi, depois que o trânsito destravou um pouco, uma perua, dirigida por um asno, sai do estacionamento e entra sem qualquer aviso na minha frente. Outra freada repentina. Mais adiante, dois buldogues ladram por causa da colisão de seus veículos, o que provoca um estreitamento do leito carroçável e rosnados entre os leões que querem mudar de faixa e os que não cedem um milímetro da sua preferência. Tudo agravado pelas filas duplas e triplas em frente às escolas, pelos relâmpagos no céu e buzinas trovejando nos ouvidos. Quando preciso mudar de faixa, em razão de obras na pista, de nada adianta minha seta ligada. Para ser mais enfático, ponho o braço para fora e, por pouco, ele não é decepado por um pterodátilo motoqueiro. Mas consigo chegar ao consultório no exato momento em que as primeiras torneiras do dilúvio são abertas. Ufa!!!

Na volta, os efeitos da chuva e a inconveniência do horário potencializam a hostilidade dos felinos no volante, entrincheirados em carros que urram, berram, escoiceiam e disputam cada palmo de chão como se estivessem fugindo das lavas do Etna. A solidariedade praticamente desaparece atrás do vidro fumê. E aquele homem que há pouco apertava sua mão – tão gentil no ambiente familiar, social, ou no trabalho - se torna o lobo do outro homem. Um predador do asfalto.

Mas, quem está com uma criança, está com Deus. Depois de quase duas horas de ziguezague, acelera-para, para-acelera, alguns sustos e xingamentos (“volta pro asilo, vovô”), consigo atravessar a selva e devolver meu netinho aos pais. São e salvo.

Mas me despeço dele com uma pontada de angústia. Se hoje o cenário é este, como será quando ele passar da condição de passageiro para motorista? Que trânsito vai encontrar? Que herança de civilidade deixaremos para ele nas ruas e nas estradas?

Essa é mais uma contradição do ser humano, na sua evolução histórica: saiu da selva, fundou as cidades e, já civilizado, vem transformando as cidades em selva. Pelo menos, nas tardes de sexta-feira.

Pereirinha
Enviado por Pereirinha em 03/03/2013
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