Mau-olhado, quem não acredita?
 
Folclore, madição, ou simples crendice popular? Atribui-se a algumas pessoas a capacidade malévola, e geralmente involuntária, de prejudicar o alvo com o olhar impregnado de inveja. É o chamado mau-olhado, olho gordo, seca-pimenteira etc.
 
O escritor e poeta paranaense Domingos Pellegrini certa vez recebeu uma visita que elogiou a avenca da sua chácara, na chegada e na saída. Ao ver a planta seca no dia seguinte, ele não resistiu e criou este haicai:

 
Tem visita que nem senta
tem visita que acampa
tem visita que seca avenca

Eu, particularmente, evito deixar-me influenciar por crenças sem lastro, assim como não acredito em bruxas. Mas que elas existem, existem, coforme reza o célebre ditado espanhol com graciosa contradição.
 
Foi no final de uma tarde de sol. Não me lembro de quantos anos eu tinha exatamente. Creio que ainda não frequentava a escola. A gata lá de casa havia dado cria. Os três gatinhos já estavam desmamados, ou quase. Enquanto minha mãe lidava com as flores no seu jardim, eu brincava com os filhotes sobre uma pilha de madeira no terreno da carpintaria do meu pai, ao lado. Uma cerca de ripas nos separava. Minha mãe de um lado, com suas plantas, e eu do outro, com meus gatos.
 
Na rua surgiram duas mulheres estranhas. Uma lá pelos quarenta e poucos e a outra entrada nos setenta. Mais ou menos. Mãe e filha. A mais nova encantou-se com os bichanos brincalhões.
 
- Que lindos gatinhos! São seus?
 
- Sim, nossa gata deu cria.
 
- Dá um pra mim?
 
- Não.
 
- Mas você tem três. Por que não me dá um só?
 
- Não.
 
Minha mãe, que a tudo assistia e ouvia, deixou suas flores por um instante e interveio na conversa.
 
- Dê um gatinho pra moça. O que você vai fazer com os três?
 
- Não.
 
Ainda me recordo dos olhos castanhos e faiscantes da mulher como se fosse hoje.
 
- Não quer me dar mesmo?
 
- Não.
 
- Que pena, eu queria tanto um gatinho. Com certeza não lhe fará falta. Ainda sobrarão dois, mais a gata.
 
- Não.
 
A mais velha apenas ria um riso encabulado. A filha, dura na queda, não desistia. Insistia e eu, mais duro do que ela, não afrouxava. Por fim se cansou e foram embora.
 
Minha mãe arrematou, penalizada:
 
- Por que não deu um gatinho pra moça? Coitada, queria tanto! O que vamos fazer com todos esses gatos?
 
Não respondi e continuei, ainda por um bom tempo, brincando com os filhotes espertos e saudáveis. Mais tarde os devolvi para a gata.
 
No dia seguinte minha casa amanheceu em pânico. Acordei com fortes dores nas pernas, de cima a baixo. Não conseguia me levantar. Do quintal, minha mãe trouxe a notícia do estrago. Os três gatinhos estavam mortos, assim como um pato, que apareceu de pernas para o ar no terreiro. Um coelho jazia rijo na gaiola. O papagaio, que vivia no butiazeiro e tinha acesso à varanda, onde fazia as refeições, através de uma vara servindo de ponte, não veio para o café da manhã. Foi encontrado no chão, contorcendo-se com uma possível câimbra ou convulsões.
 
A preocupação maior, evidentemente, era comigo. Chamaram o médico do bairro, o Dr. Alfredo Jorge Tramujas.
 
Diante do diagnóstico impreciso, receitou analgésico e disse que voltaria à tarde para ver como eu estava. Mandou que ficassem de olho.
 
À medida que as horas passavam, fui melhorando. Quando o médico chegou, ao escurecer, eu já estava fora da cama. No dia seguinte não sentia mais nada além da tristeza pela morte dos bichinhos de estimação.
 
O papagaio logo se recuperou. No entanto, passou o dia meio jururu e nunca mais falou. Não o ouvimos mais dizer, com a voz característica dos louros, “papagaio, rico”; “truco!” e outras coisas que ele já tinha aprendido. Acabou a esperança da minha mãe de um dia ouvi-lo repetir o meu nome. Contudo, ele não deixou de festejar a chuva. Ao sentir os primeiros pingos de um aguaceiro de verão, abria e batia as asas no alto da árvore, e gritava como sempre fazia. Ainda inclinava a cabeça e consentia que a coçássemos ao ouvir a palavra piolho. Surdo então não ficara. Quando invertíamos os papéis, avizinhando a cabeça à dele e falando piolho, ele bicava levemente o nosso couro cabeludo. E continuava dando os pés, se lhe oferecêssemos o indicador.
 
Não dá para se ter certeza do que realmente aconteceu naquele dia. Pode ser que tudo não tenha passado de uma cadeia de coincidências. Mas pode ser que não. Eu e os bichos poderíamos ter sido vítimas de um fenômeno sobrenatural ou algo do gênero. O tal mau-olhado.
 
Na época, ouvi gente afirmando que os bichos me salvaram, pois toda a carga do mal estaria voltada contra mim. Por algum motivo, ela se dissipou e atingiu também meus amigos, poupando-me do impacto concentrado e que certamente teria me causado danos maiores. Outros diziam que teria sido dirigida inteiramente para os gatinhos. No entanto, foi tão violenta que extrapolou o alvo e atingiu os outros animais e também a mim. Vá saber...
 
Jamais tornei a presenciar qualquer coisa parecida com aquele desastre, ou pelo menos em igual intensidade. Assim, vou continuar não acreditando em bruxas, mas que elas existem, existem.


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N. do A. - Na ilustração, Inveja de Ignacio Diaz Olano (Espanha, 1860-1937).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 21/02/2013
Reeditado em 14/06/2021
Código do texto: T4151702
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