E o Afonso Pena ganhou o seu ILS
 
O Aeroporto Internacional Afonso Pena, de Curitiba, que na verdade situa-se no vizinho município de São José dos Pinhais, foi construído com ajuda dos americanos para servir de base militar na Segunda Guerra Mundial. Diz a lenda que a localização foi escolhida estrategicamente por ser a região sujeita a constantes nevoeiros. Quando ficou pronto, em 1944, a guerra já estava se encaminhando para o fim. Portanto, pouco serviu ao objetivo inicial. Em janeiro de 1946, foi entregue à operação da aviação civil.
 
Em que pese a lenda, o fato é que o terminal sempre foi problemático nos meses de inverno, principalmente no período da manhã e à noite. Com muita frequência os voos atrasam ou são cancelados por falta de teto. Esta situação já foi bem pior antes da instalação do primeiro ILS (Instrument Landing System). Hoje o aeroporto opera com dois ILS categoria 2. Até a Copa do Mundo de 2014 cogita-se a implantação de um novo, de categoria 3, que permitirá pousos em qualquer condição de visibilidade.
 
Durante muitos anos, a Varig operou o voo RG-938, que saía de Brasília às 18h05min com destino a Buenos Aires e escalas em Curitiba e Porto Alegre. Para os daqui da terra dos pinheirais, quando retornavam de viagem à capital federal, era uma ótima pedida, pois se tratava de uma decolagem de fim de expediente, sem a incômoda escala ou conexão em São Paulo e com chegada prevista para antes das 20h. Por outro lado, era um voo bastante temido no inverno, aliás como todos desse horário em diante. Não raro, depois de sobrevoar a capital paranaense, o avião seguia sua trajetória rumo a Porto Alegre, por falta de visibilidade para pouso seguro no Afonso Pena.
 
Numa tarde de inverno, embarquei mais uma vez naquele voo, ansioso para chegar em casa depois de alguns dias fora. Tomei meu assento junto à janela, no lado direito. Logo depois, na poltrona contígua, sentou-se o Dr. Francisco Cunha Pereira Filho, líder de um conglomerado de jornal, rádio e televisão, que mais tarde, com a criação e aquisição de novas unidades no setor, transformou-se no atual GRPCOM (Grupo Paranaense de Comunicação).
 
Ainda não o conhecia pessoalmente, mas isso não nos impediu de, por iniciativa dele, entabulamos desde os primeiros minutos agradável conversa acerca de assuntos gerais, mas girando sempre em torno de jornal, televisão e telecomunicações.

Nas proximidades de Curitiba, o comandante da aeronave informou à tripulação e passageiros que seriam iniciados os procedimentos de descida. Tomadas as providências de praxe, viemos baixando entre nuvens, sem poder ver a cidade. Somente muito perto do aeroporto e em baixa altitude é que foi possível vislumbrar algumas luzes.
 
O Dr. Francisco parecia muito feliz, tal como eu, com o desembarque iminente. Entretanto, para surpresa de todos, quando parecia que o avião tocaria o solo em segundos, ele arremeteu e passou a ganhar altitude novamente. O meu vizinho ilustre, atônito, perguntou-me o que estava acontecendo. Respondi que certamente iríamos a Porto Alegre. Dito e feito. Em seguida o comandante informava pelo sistema de som que por falta de teto no Afonso Pena estávamos seguindo para a capital gaúcha.
 
Visivelmente contrariado, o Dr. Francisco, apontando os dedos unidos para si próprio, reclamou que estava apenas com a roupa do corpo. Não tinha bagagem porque fora a uma reunião em Brasília de manhã. Como não haveria pernoite, não levara nada além de uma fina pasta de couro com seus papéis de trabalho.
 
No inverno seguinte, eu viria a passar pela mesma situação embaraçosa. Lembrei-me então do Dr. Francisco, sentindo na carne a angústia ante a perspectiva de não se ter uma roupa limpa para vestir depois de um banho justo, após um dia de trabalho duro.
 
Havia ido ao Rio de Janeiro para uma reunião, num voo matutino, e voltava à noite num voo para Florianópolis com escala em Curitiba, sentado numa poltrona de corredor. Durante o serviço de bordo, um desastrado comissário fez-me o favor de despejar sobre o meu terno uma jarra de suco de laranja. Pedindo desculpas sem qualquer constrangimento, ele entregou-me um pano branco e instruiu-me a umedecê-lo com água quente, no lavatório do toalete, para limpar o terno, camisa e gravata. Acrescentou que a secagem  seria rápida, em função da pressurização da cabine. Com efeito, o processo de secagem estava indo muito bem quando, já sobre o Afonso Pena, o comandante anunciou que por falta de visibilidade e segurança para o pouso iríamos direto para a capital catarinense.
 
No aeroporto de Florianópolis, a companhia aérea ofereceu duas opções aos passageiros desviados. Uma era pernoitar na ilha, com embarque de retorno para o dia seguinte. A outra, acomodar-se num ônibus que já estava à espera e seguir imediatamente para Curitiba. Com a roupa seca, mas cheirando a laranja e sem ter outra para trocar, não tive outro jeito. Embarquei no ônibus. Viagem cansativa. Não consigo adormecer fora de uma boa cama. Por isso segui acordado e contando os bordéis à beira da estrada - e como tinha bordel ao longo da BR 101! Anunciavam-se com a lâmpada vermelha, característica do ramo, acesa na fachada. Em todos eles, invariavelmente, meia dúzia de caminhões de clientes estacionada no pátio.
 
Seguindo para Porto Alegre, eu e o Dr. Francisco continuamos a conversar, mas sem o ímpeto do primeiro trecho da viagem. Contei a ele que a frustração de não poder desembarcar no Afonso Pena no inverno era coisa corriqueira. Já havia acontecido comigo algumas vezes e tinha relato de vários colegas que haviam enfrentado o mesmo problema. Ele disse achar incrível contarmos com um aeroporto tão desaparelhado numa região sujeita a densos e frequentes nevoeiros.
 
Finalmente aterrissamos no Salgado Filho, em Porto Alegre. Uma comissária de bordo orientou os passageiros de Curitiba a dirigirem-se ao balcão da companhia para retirar novo bilhete para o voo de volta na manhã seguinte.
 
Dada a minha experiência de vítima em outras oportunidades, sugeri ao Dr. Francisco que não acatássemos o horário que seria ofertado pela empresa. Nessas ocasiões eles impõem um voo em torno das 7h. Como o avião só sai do Salgado Filho depois da liberação do Afonso Pena, isso é uma bobagem. Enfrenta-se uma operação de guerra para chegar ao terminal às 6h e fica-se tomando chá de aeroporto até próximo da hora do almoço. Melhor, então, escolher um voo para mais tarde, que dá no mesmo, mas sem o lancinante chá de saguão.
 
Aparentemente ele aceitou a minha proposta e fomos para o balcão. Antes de sermos atendidos ele pediu licença e se afastou. Julguei que tivesse ido ao banheiro.
 
Chegou a minha vez e nada do Dr. Francisco. O homem sumiu. Marquei meu voo para o meio da manhã e fui para o ônibus que nos levaria ao hotel. Sentei-me e fiquei na expectativa de rever o meu até então companheiro de viagem. Contudo ele não apareceu. Também não o vi no restaurante do hotel.
 
Nunca fiquei sabendo o que aconteceu. Talvez ele tenha ido providenciar transporte alternativo para viajar na mesma noite. Pensei em telefonar ao chegar em Curitiba, mas entendi que ele não me dera intimidade suficiente para tanto. Então desisti.
 
No dia seguinte, a bordo do avião que me devolveria a Curitiba, vim refletindo sobre a noite anterior. Concluí que em certos momentos da vida fica mais evidente que todas as pessoas são iguais, ainda que por um breve tempo. Não basta o poder, a riqueza, o cargo, a fama. Diferenças étnicas, de raça ou credo anulam-se sumariamente diante de algumas circunstâncias, como se quisessem nos lembrar de que elas nunca deveriam existir. Naquele voo, provavelmente o Dr. Francisco Cunha Pereira Filho fosse a pessoa mais poderosa e influente entre os passageiros. Porém diante do fato de que ele não conseguiria em hipótese nenhuma mudar o curso dos acontecimentos, exigindo que o nosso avião pousasse no Afonso Pena interditado por força de um fenômeno climático, ele se igualava a todos os outros na fragilidade.
 
Logo após esse incidente, entretanto, ele arregaçou as mangas e foi buscar a luta no seu campo de batalha. A Gazeta do Povo, de Curitiba, o jornal do seu conglomerado, iniciou veemente campanha, com empenho pessoal dele, para que o Aeroporto Afonso Pena, que ainda não tinha o status de internacional, viesse a ser dotado de equipamento que possibilitasse pousos mesmo em condições de visibilidade desfavoráveis. Desse modo, buscando sensibilizar o governo e mobilizar a sociedade, ele enfrentou a maldição do nevoeiro, expressão cunhada por ele para popularizar o projeto.
 
Assim, em setembro de 1996, o aeroporto - que desde junho já era internacional - ganhou o seu primeiro ILS, categoria 1, mais tarde substituído pelo de categoria 2, que permite aterrissagens com um quarto do teto necessário para pousos inteiramente visuais. Demorou, mas o Afonso Pena ganhou o seu ILS. E poderia ter demorado mais, não fosse a tenacidade do Dr. Francisco.


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N. do A. 1 - Na ilustração, o Aeroporto Internacional Afonso Pena em fotografia disponível na Internet.
 
N. do A. 2 - O Dr. Francisco Cunha Pereira Filho, advogado, jornalista e empresário, faleceu em 19.03.2009, aos 82 anos.
 
N. do A. 3 - Como paranaense, lastimo encontrar em O Livro do Boni, de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, a citação errada do nome do Dr. Francisco, bem como a omissão do prenome do seu sócio Edmundo Lemanski. Num flagrante descuido ou ato de indelicadeza, e, por conseguinte, clara demonstração de descompromisso com a história, o notável autobiografado, referindo-se ao episódio da afiliação da TV Paranaense à Rede Globo, em 1976, cita-o como Francisco de Melo Cunha. É de doer.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 04/02/2013
Reeditado em 18/10/2021
Código do texto: T4122364
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