Ao cinema, mas de paletó
 
Não sei se a exigência era nacional ou restrita a algumas cidades, ou só à minha. O fato é que, numa determinada época, inventaram de exigir dos rapazes acima de 16 anos o uso de paletó para entrar em qualquer seção de cinema.
 
A medida deixou a rapaziada em polvorosa, e contentes os alfaiates. Provavelmente nunca os artesões do ramo, em Curitiba, tiveram tantas encomendas. E todas com urgência porque ninguém queria perder os lançamentos, que não ficavam muito tempo em cartaz.
 
Também não me recordo do filme. Se foi um do Tarzan ou um sucesso nacional de Oscarito e Grande Otelo. Talvez Mazzaropi. Meus primos Ruy e Rubens, que moravam no então vizinho município de Piraquara, aproveitando uma viagem do tio Jacob, pai deles, para resolver seus assuntos de comerciante, apareceram lá em casa para almoçar e depois encararmos juntos uma matinê no Cine Ópera.
 
Assim que terminamos o almoço, embarcamos na camionete do meu tio, uma picape Chevrolet 1951 verde-escura e para-lamas pretos, impecável, com capota de lona, também preta, e janelas de plástico transparente na caçamba. O Ruy embarcou na cabine; eu e o Rubens nos aboletamos num banquinho estofado sob o toldo. Já no centro, o tio Jacob estacionou na Rua Cruz Machado defronte uma mercearia, para ir à Lojas Prosdócimo do outro lado da via. Enquanto isso, apeamos os três e ficamos à espera dele sob a sombra de uma marquise. O Rubens teve a ideia de comprar três garrafinhas de Coca-Cola, para amenizarmos um pouco o calor terrível que brindava a cidade naquele dia.
 
Não demorou, e o tio Jacob apareceu atravessando a rua. Mal colocou os pés na calçada, surpreendeu-se com o trio deliciando-se com o refrigerante geladíssimo. Sem titubear, desferiu a bronca:
 
- Vocês estão loucos? Acabaram de almoçar e estão tomando esse troço gelado! Isso faz um mal terrível.
 
Engraçado que naquele tempo a Coca-Cola adotava o slogan que sempre finalizava suas propagandas:
 
...Coca-Cola! Isto faz um bem...
 
E vinha o meu tio dizer justamente o contrário. Fiquei matutando se de fato ele estava falando a verdade ou estava apenas reclamando, indiretamente, da despesa que estávamos dando. Meu tio Jacob era ótimo, mas tinha fama de homem seguro. De jamais fazer despesas, a não ser quando absolutamente necessárias. E certamente aquele refrigerante, sob o ponto de vista dele, no momento era um desperdício. Além de ser um despropósito ingeri-lo sobre o almoço quente de uma hora atrás.
 
Justiça seja feita. Minha entrada no cinema foi bancada por ele. Daí mais um motivo a endossar sua tão veemente reclamação. A Coca-Cola não estava no orçamento dos altos gastos do dia.
 
Recompostos do raspe, devolvemos as garrafas vazias à mercearia, despedimo-nos do tio Jacob e descemos para o Cine Ópera, a fim de aproveitarmos nossa tão aguardada matinê. Chegamos cedo. Compramos os ingressos e faceiros fomos entrando. Passei eu, em seguida o Rubens. O Ruy enroscou. O autoritário porteiro avisou:
 
- Maiores de 16, só de paletó. Ou prova que tem menos ou não entra.
 
O Ruy ficou surpreso. Lívido, meio sem saber o que acontecia. Achou que o porteiro estivesse brincando. Mas não estava. Sem o bendito paletó não podia.
 
Assim, eu e o Rubens, mais novos e sem paletós, fomos para a sala de projeção, deixando na portaria um Ruy com a maior e indisfarçável cara de desapontamento.  Quando saímos, ele continuava triste à nossa espera.
 
Na semana seguinte, antes que o filme saísse de cartaz, o Ruy voltou para assisti-lo. Desta vez sozinho, mas de paletó.
 
A descabida exigência perdurou por um bom tempo. Todavia, nunca fui alcançado por ela. Quando completei meus 16 anos ela já não vigorava e eu pude continuar indo às minhas seções sem nenhum empecilho. O cinema acabou sendo quase o meu vício. Ia sábado, domingo à matinê e fechava o circuito à noite, salvo se houvesse alguma peça de teatro interessante no Guaíra ou no Teatro de Bolso, a um custo suportável. Graças a Deus não era mais necessário o paletó. Caso contrário, eu teria de mandar fazer diversos. Ficaria muito chato vestir sempre o mesmo.


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N. do A. – Na ilustração, foto publicada no Daily Mail, captada na Internet.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 29/01/2013
Reeditado em 27/02/2021
Código do texto: T4111707
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