HERANÇA QUEBRANTA O AMOR

Não sei se é devida a minha viuvez que me faz buscar lembranças passadas. Busco quem sabe por falta do meu marido a figura masculina de meu pai. É certo que há o filhão único machinho que pari e que hoje mora com sua família na França.
Porém, hoje me vem a lembrança dos feitos de meu pai quem sabe por ele estar velhinho e eu tenha medo de perdê-lo. Mamãe já se foi há sete anos, meu marido há um ano e sinto que não estou preparada para mais um cortejo familiar. O último já me baqueou e continua baqueando muito.
Lembranças passadas que me vêm à mente começam de meu casamento que fora numa quinta feira de setembro em que tive o prazer de ter como celebrante um primo, que na época era um recente padre sendo ordenado há três anos. Padre Marcio é o seu nome. Ele ficara hospedado em casa na semana do casório. E quatro horas antes da cerimônia lembrei-me de que não havia confessado vez que pretendia comungar. Eu fazia parte das moças filhas de Maria que usavam aquela faixa azul no peito momento de qualquer celebração cristã.
A qualquer avanço no namoro e noivado eu dizia ao meu noivo que iria me casar virgem, ao contrário me casaria de preto. E dessa forma ele muito me respeitava.
Voltando a confissão mamãe indicou meu quarto para que eu pudesse confessar com meu primo. E no quarto estava pendurado meu lindo vestido de noiva.
Ao me confessar percebi que padre Marcio compreendia que meus pecados eram muito infantis, e ousou a me dar um aperto ao perguntar sobre o noivado. Interrogava se fora muito chegado, enfim. Eu era menor idade e meus pecados se é que existiam eram infantis. Muito embora eu fosse jovem sabia muito sobre a vida, ajudei mamãe a criar os irmãos menores. Mas senti que deveria contar - até mesmo por orgulho – ao padre que eu era virgem. Assim se dizia na época, virgem, moça, casta e outros.
Diante da repetida pergunta apontei o dedo ao me vestido de noiva e disse ao padre:
- O senhor está vendo esse vestido branco? Acrescentei.
-Se até hoje o senhor não teve a certeza de fazer uma celebração de uma moça virgem, saiba que entrarei na igreja com esse vestido branco dentro da maior pureza, sou moça padre. E comecei a chorar de emoção e vergonha por me sentir levada a dizer o que disse. Padre Márcio me absteve de qualquer penitência e me abraçou dizendo que via as moças entrarem de branco e pensava não ter a certeza de que estavam honrando o branco. Acrescentou que estava feliz por minha integridade e logo perguntou se eu leria frente aos convidados a epístola de São Paulo. Não tive dúvida ao responder que leria, e assim o fiz.
Findada a festa (quase que disse findada a efeméride, rs.) troquei o vestido de noiva por um terninho (blaiser e calça comprida) e papai nos levou a minha nova morada onde eu queria passar minha primeira noite, em uma cama virgem como era eu. Daí sim, dia seguinte seguiríamos para a Colônia de Férias em Bertioga. Não tínhamos carro, íamos sair de casa muito cedo porque a passagem já estava comprada.
Por gentileza meu marido disse ao meu pai:
- Vamos entrar Sr. Ronan. E ele aceitou o convite falando compulsivamente sobre a festa, interrogava meu marido se a família dele esboçou algo sobre a recepção. Enfim, estava como se diz chulamente: empatando a foda.
Notamos que meu sogro não havia instalado o chuveiro. Resolvemos que iríamos nos banhar na casa de minha sogra há três quadrinhas de minha casa. Papai logo se prontificou a nos levar. Ao chegarmos ele disse que nos esperaria dentro do carro. Não queríamos em hipótese alguma, mas quando Sr. Ronan decide algo, ninguém contesta sob argumento algum. Tomamos nosso banho e papai ainda nos prendeu na porta de casa por uns vinte minutos. O “enfim sós” estava difícil.
Entramos em casa e logo mais eu estava vestida de uma linda camisola em cetim na cor pêssego. Passei a secar meus cabelos com secador quando meu marido o tomou de minhas mãos num gesto de mais aproximação ou quem sabe deixar-me mais a vontade o mesmo passou a secar meus cabelos. De cabelos secos rumo à cama a campainha toca. Adivinha?
Meu pai sobia a escadaria com uma enorme caixa que continha um cobertor. Estava quente o tempo, era mês de setembro. Alegava o que imaginava que precisássemos de um cobertor, pois não tinha certeza se eu levara para a nova moradia o famigerado cobertor.
Saiba leitor, ganhei de enxoval do meu próprio pai dois belos cobertores. E ganhe mais dois cobertores de presente de casamento. Papai pegou um dos cobertores de presente e usou-o como argumento para ficar mais um pouco ao meu lado. Ele entrou, fiz um café forte porque ele reclamava de fraqueza. Enfim, papai saiu de casa para mais de meia noite, e meu marido e eu iríamos sair de casa até a rodoviária (de taxi) as cinco e meia da manhã para tomarmos o ônibus as sete.
Após dez dias na volta da lua-de-mel mamãe me dissera que papai apanhara o cobertor a sua revelia, ela já havia notado que ele estava nos atendo de ficarmos sozinhos. E quando voltara após nos deixar o cobertor atirara-se em minha cama e chorava dizendo:
-Espero que ele seja delicado com minha filha, agora não tem mais jeito, e chorando acabou por dormir em minha cama, como se velando sua filha. Nossa, caro leitor estou chorando por incrível que pareça.
Outro episódio que muito marcou em minha vida foi a dez anos passados. Papai novamente como o protagonista. Ele, com pousada em Águas de São Pedro e eu e meu marido com pousada no bairro do Gonzaga em Santos. Ao telefone prometi a papai que iria passar o final de semana com ele e mamãe. A pousada lotou e não pude ir. Papai ligava e dizia:
- Semana que vem, você virá? Eu prontamente respondia que sim. E assim por diante adiei por mais ou menos cinco semanas minha ida para Águas de São Pedro. Em uma sexta feira telefonei a ele afirmando minha ida vez que a pousada não estaria lotada, e assim o fiz, fui.
Ao chegar estranhei vendo meu pai muito barbudo. Beijei-o sob a interrogação:
-Mas que barba é essa? Ao que ele respondera:
- Vou me barbear agora, pergunte a sua mãe o motivo desta barba.
Mamãe ria e dizia:
Você não vai acreditar, ele fez promessa que não se barbearia enquanto você não chegasse.
E para finalizar papai fez questão de fazer o jantar, convidou três tias e um tio e brindamos com vinho a minha retardada visita. Estranhei minha taça vez que era maior e em cristal mais fino do que as outras. Logo papai disse:
- Essa taça só serve a quem me é muito bem vindo. Acrescentou:
- Essa taça é o último presente que restou do meu casamento com sua mãe. Daí, não o poupei, pedi a taça de quase cinquenta anos prometendo que dela cuidaria como um bibelô. Papai em respeito à mamãe disse:
- De minha parte ela é sua. Agora tenho que ver o parecer de sua mãe a qual, não esperou a consulta dizendo que era minha a partir daquele momento.
Pensei em revestir sua borda em ouro e devolver a eles quando dos cinquenta anos de casados, mas o tempo e minha corrida no trabalho não me permitiram se quer lembrar.
Depois que mamãe faleceu papai mudou muito comigo. Aquele xodó para comigo partiu com mamãe em seu túmulo.
Há dois anos precisei entregar o prédio da pousada para uso próprio da locadora (uma irmandade). Sem capital, com marido doente solicitei ao meu pai meu quinhão de herança deixado por mamãe. Ele se negou e daí sim, ganhei um inimigo mortal.
Trocaria a herança deixada por mamãe para ter o meu velho pai mais voltado pra mim. Ele mudou muito e não só comigo como com parte de irmãos menos favorecidos. É lamentável que essa crônica que ora encerro se junta às minhas ardentes lágrimas
.

(Hoje papai voltou a ser meu amigão, tirei a mão do seu bolso e botei em seu coração, isso pq. recebi a famigerada herança de mamãe).
Lúcia Borges
Enviado por Lúcia Borges em 09/01/2013
Reeditado em 12/06/2016
Código do texto: T4076380
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.