A ESTORIA DO GATO FALANTE

Há muito tempo atrás, os animais falavam. Que idioma e com quem falavam ninguém sabe. Mas falavam. É o que me garantia minha prima de sete anos de idade - a Deínha.Assim eu a chamava ( e ela não gostava ) porque o nome dela mesmo era Hailê, filha de minha prima Júlia e neta de minha tia dona Rái. Ela passava a maior parte do tempo na casa da avó, só à tardinha a mãe vinha busca-la. Quando chegava da escola, a primeira coisa que a Deínha fazia era chamar o mosquito – um gato manhoso que a dona Rái criava desde filhote. Agora já adulto, o mosquito não gostava de muito chamego exceto com a Deínha. Eu adorava ver quando a Deínha ainda com a mochila às costas ao entrar gritava com aquela voz doce mas enjoada: -Voó! Cadê o mosquitô (ela falava ) com destaque na última vogal. Minha tia respondia la da cozinha: - E eu sei lá desse gato safado menina, deve estar por aí batendo pernas. Ele só aparece na hora de comer... Nos dias em que a Deínha estava no terraço alisando o pelo do mosquito, ela “conversava”com ele. Eu chegava sorrateiro e perguntava: - O que ele disse Deínha? Ela não respondia, apenas dava de ombros como se dissesse: - meu nome não é Deínha, é Hailê tá? Depois olhou-me de soslaio, e sorriu. Uma vez ela me perguntou enquanto rabiscava num caderno figuras de gatos: - Álvaro, os bichos quando morrem, vão para o céu? - Claro! Respondi: se forem bonzinhos.

Então ela me disse: - Eu acho que o mosquito vai para o céu quando morrer, ele é bonzinho. A Deínha era assim: uma garota sensível e muito inteligente. Às vezes fazia perguntas que deixavam os adultos numa sinuca. Confesso que tinha receio quando ela me perguntava alguma coisa. Certa vez, ela me questionou sobre o meu trabalho. Na ocasião eu trabalhava em um dos Bancos da cidade. Com determinação e curiosidade ela me olhou nos olhos e perguntou: - Álvaro, o que é juro? Então lhe expliquei que juros era uma quantia em dinheiro que a pessoa pagava por pedir dinheiro emprestado ao Banco, para ser mais simples possível ao seu entendimento. Ela baixou os olhos sorriu e sai-se com essa: - Ah! Eu pensava que juro era assim: A pessoa pega o dinheiro com gerente e diz: Eu juro que pago! Fazer o que? Apenas contive minha risada, para não deixa-la sem graça.

Essa curiosa menina, às vezes me encabulava. Eu ficava pensando: Será que ela conversa mesmo com esse gato? Deixa-me ver. Então eu chamava o mosquito e dizia: - Vamos conversar mosquito. Deita aqui. Mas o diabo do gato não dava moral pra mim. Ele me olhava feio e agia como se dissesse: - Não converso com estranhos, e ia embora torcendo o rabo.

Eu na ocasião, morava na cidade de Presidente Prudente no interior do Estado de São Paulo. Residia no centro da cidade, e na época da festa de N.S. do Rosário, havia uma “quermesse” no salão paroquial. Quermesse pra quem não sabe, é uma festa de mais ou menos sete dias com bingos, prendas, brindes, comes e bebes e principalmente muitas garotas a fim de arrumar namorado com o uso do correio elegante, uma forma de comunicação entre as mesas com bilhetinhos e mensagens de amor entregues pelos garçons e garçonetes. A paróquia ficava num dos bairros mais antigos da cidade – A Vila Marcondes. Próximo a igreja, havia um velho cemitério que já não se usava mais. Ficava numa rua bem atrás da principal e não era calçada e quase não tinha iluminação. Mesmo assim, da rua principal podia-se avistar aquelas formas sombrias de cruzes e túmulos muito antigos. Contavam os moradores que por volta de 1940, aquele lugar era um sítio pois a cidade ainda não havia se expandido até ali. Numa casinha de madeira vivia um velho com o seu cachorro e que de lá eles podiam avistar a trilha por onde passavam as tropas de burros, os cavalos e carroças que chegavam à cidade, justamente onde hoje é a rua principal do bairro. Dizem que quando o velho morreu, ele foi sepultado pelos outros moradores do local por ali mesmo já que não existia o cemitério. A verdade é que o animal ficou abandonado e acabou morrendo de fome. Passados alguns anos, o bairro se modificou. Surgiram novas casas (ainda todas de madeira) e construíram o tal cemitério. Contam também que em certas noites algumas pessoas viam um cachorro deitado num terreno baldio bem debaixo de um velho Ipê, justo onde fora o casebre do velho solitário. Esse cemitério hoje, quase abandonado, visitado apenas por algumas pessoas no dia de finados já foi o principal da cidade naquela época. Meu primo Zeca, um gozador incorrigível, cheio de estórias me contava o seguinte: Em um passado recente, o pároco (hoje já falecido) era um padre alemão que ainda não dominava o nosso idioma e com aquele sotaque germânico pronunciava algumas palavras com certa dificuldade. Ele não aceitava o desmando para com o cemitério uma vez que lá estavam sepultados alguns dos primeiros fieis de sua paróquia. Vez em quando nos sermões das missas ele chamava a atenção para que as pessoas não usassem o campo santo como passagem para as ruas posteriores. Ocorre que o tal cemitério (eu mesmo passei por lá para comprovar) nem portão tinha mais, apenas um velho muro caindo aos pedaços e algumas covas que já viravam uma trilha por onde passavam pessoas, burros, cavalos e até bicicletas. O padre lamentava por isso e em tom de advertência pedia mais respeito com aqueles sepultos ali. Como ele tinha dificuldade em articular algumas palavras, ele não dava conta de dizer pisar com z.Ele dizia: "pissar" com dois ss. Acontece que naquela época a palavra pissar era um verbo que não podia ser pronunciado nas salas de estar das famílias, pois era uma expressão erótica equivalente hoje a "transar". O padre, coitado! meio ao sermão,reclamava: - "É prercisso tomarr mais cuidada com o cemitérrio, fica toda mundo pissando no cemitérrio. As pessoas pissam lá,até os cavalos pissam também! Isso não pode continuarr, porque estão pissando nos defuntos parrentes de vocês. E agente caia na risada. Esse era desejo do meu primo - fazer palhaçadas.

Voltando ao cachorro abandonado, algumas pessoas o viam ou imaginavam assim, perambulando pela única rua do bairro, que então não dispunha de luz elétrica. Alguns dizem que ouviam uma voz rouca suplicando: comida! Muitos evitavam passar por aquele local à noite.

Na última noite da quermesse por volta das 11:30h. eu deixei o salão e rumei para o centro a pé, pois o ônibus circular já havia parado àquela hora. Ao passar pela tal rua, ainda mal iluminada, percebi alguma coisa se mexendo entre as toceiras de capim ao longo da guia da calçada. Vi algo que não consegui identificar, mas era um bicho, parecia um cão preto que me olhou bem nos olhos. Eu como sempre nessas horas sou frio como uma pedra de gelo, passei sem me alterar. Poucos passos à frente, escutei nitidamente uma voz rouca dizendo: Comida!

Nem olhei pra traz, e só quando alcancei o próximo poste com a lâmpada amarela acesa sobre minha cabeça, me dei conta do susto, meus pelos arrepiaram e senti um pouco de medo. Foi então que lembrei-me da Deínha e do gato mosquito. Fui-me embora pra casa e nunca contei isso à alguém...

Por Álvaro Francisco Frazão.

Frazão
Enviado por Frazão em 14/12/2012
Código do texto: T4035957
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