Natália

Já era cega há 22 anos. Desde de quando nascera. Jamais havia visto o mundo, apenas imaginado. Conforme todas as pessoas que nascem com uma deficiência qualquer, aprendeu a viver de maneira satisfatória com sua limitação “natural”. Tinha o olfato apurado, talvez para compensar a perda da visão. Mas ela sempre repetia: “Pro diabo o olfato, queria mesmo enxergar!”. Não pensem que Natália era uma moça rabugenta por não poder enxergar. Até eu mesmo já pensara assim uma vez, mas Natália tinha esse jeito mesmo. Tenho fé que mesmo se tivesse a visão seria assim. Natália é uma daquelas pessoas que sempre estão incomodadas com a existência. A existência é algo pesado, sem lógica. Uma vez ela me confidenciou: “Olha, se para ser eterno tivéssemos de não ter nenhum tipo de deficiência, aí sim, certamente seria uma pessoa bem triste. Mas diante da realidade, ou seja, todos irão morrer, independente de qualquer situação humana, então tudo se torna tolice e entediante”. Tolice e mesmice. Era assim que Natália via a existência. As vezes ela me falava essas coisas de maneira irônica, então ríamos. Mas algumas vezes tinha um tom sério, angustiante, de insatisfação; então ficávamos calados.

Natália aprendera a ler em Braile com apenas 10 anos. Adorava a literatura. Deixara escrito um livro de poemas e um romance inacabado. A existência de Natália ficou inacabada, uma existência que tem uma duração tão curta é como uma obra inacabada. Na minha opinião, Natália vivera intensamente.

Dizia-se não ter fé, mas demonstrava uma confiança na sabedoria que mais parecia uma monja. Com 17 anos se apaixonou pelo niilismo. Assim era Natália, uma contradição viva. Niilista e idealista. Talvez seria isso muito mais por parecer legal do que por vontade mesmo. Achava esteticamente bonito quem fosse niilista e idealista, pois assim poderia bater em prepotentes e acariciar pessoas de boa-vontade. Poderia apontar vários defeitos de comportamento em Natália. Mas quem, que busca ser livre em pensamento não recolhe pelo caminho os vícios da existência? Eu mesmo, já não tenho sequer uma virtude intacta, mas os vícios são tantos, que as vezes me pego alegre sem sentido algum. Natália dizia: “As virtudes são perigosas, pois elas exigem continuidade. Já os vícios não, eles não exigem, mas apenas estão ali à disposição. E quando não fazemos usos deles tudo fica em harmonia”. A harmonia para Natália era apenas flertar com os vícios, jamais se envolver intensamente. As virtudes só para os disciplinados, pois caso contrário, seria um grande desastre.

A primeira viagem de Natália foi aos 19 anos. Rubens lhe apresentara a maconha. Ficar “ligada” foi um namoro longo. Daí passou a flertar com a cocaína. E aos 21 anos já estava enamorada da heroína. Mas Natália acabou descumprindo seu próprio conselho e se envolvera intensamente com a heroína. Mas também como não se envolver com esse vício milagroso. Foi no outono de 1978 que Natália pela primeira vez viu a cor do mundo. A heroína naquela tarde havia lhe dado um milagre, ou seja, a visão. Primeiro pensou se tratar de alucinação, mas ao perguntar a Rubens a cor de sua blusa constatou que o efeito daquele vício-virtude havia dado-lhe a visão. Pela primeira vez via as coisas como realmente se apresentam ao mundo. Já conhecia as divagações schoppenhauerianas, mas ainda assim preferia crer na mística da realidade a crer na ciência petrificada dos iluministas ilusionistas.

Aos 22 anos, com sua maior tese refutada por ela mesma, já estava envolvida intensamente com diversas drogas. Já nem mais precisava se arriscar nas compras narcotráficas, era considerada uma cliente VIP. Apenas ligava e um motoboy vinha-lhe entregar sua encomenda. O grande acontecimento da vida de nossa heroína aconteceria neste ano fatídico. O ano de 1992. Rubens tinha um amigo médico e pesquisador dos efeitos das drogas. Este médico, que não recordo o nome agora, o chamarei de Dr. X, havia feito um experimento com várias drogas numa paciente que perdera a visão de maneira traumática. Esta paciente voltou a enxergar perfeitamente após uma dose bastante elevada da mistura milagrosa de várias drogas. E para colaborar, estas drogas eram facilmente encontradas em qualquer esquina de qualquer cidade.

Talvez, ainda não mencionei aos leitores que Natália tinha uma vontade imensa de enxergar. Pode até parecer óbvio que um cego queira enxergar, mas conheço alguns cegos de nascença que não tem essa vontade como primordial. Mas Natália era diferente da maioria, sempre o fora.

Rubens apresentara Dr. X a Natália. O Dr. X falara de suas pesquisas deixando Natália entusiasmada. Ele a alertara que tinha feito apenas uma única vez o tratamento com as drogas, porém tendo um resultado favorável. Muitas pessoas que ele havia convidado temiam o pior. Mas o Dr. X não conhecia o espírito de Natália. Ela sempre esteve pronta para momentos assim. É como se toda sua vida fosse um ensaio para um momento decisivo. Ele falou que devido a alta dose da mistura poderia acarretar uma overdose fatal. Ela teria que refletir e tomar a decisão. Rubens me disse que Natália assim se expressou ao Dr. X: “Decidir? Já estou decidida desde o meu nascimento. Pessoas como eu não têm escolha, doutor. Pessoas como eu não se limitam aos limites naturais da existência, sempre queremos atravessar esta linha que nos separa do grande mistério. E para atingir o mistério ainda na juventude tem que se ter coragem. E esta virtude em mim é em demasia. A coragem é a única palavra que poderia me descrever de maneira essencial. Estou pronta para o indeciso, para o ainda tosco, para o ainda nem tão seguro, o senhor me entende?” Rubens me disse que naquele momento o Dr. X entendera um pouco daquela criatura. E as flechas de Cupido atravessaram o coração do doutor. Aquela mulherzinha era digna de louvor e paixão.

Rubens me dissera que a valente Natália viu o mundo, a realidade, por aproximadamente 13 minutos. Depois ela fechou os olhos eternamente.

06.03.07

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 06/03/2007
Código do texto: T402974
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