Eu no cárcere
 
Acordei no meio da noite com uma incômoda dor no peito. Mais ou menos um palmo de dor bem no externo. Ao toque, não sentia nada. Ao respirar, doía mais. Vira para cá, vira para lá. Tentava dormir. Dormia um pouco e acordava de novo com ela sem me dar trégua.
 
Levantei-me e fui até a sacada apreciar o mar que batia calmo na praia iluminada. Um ou outro transeunte aproveitando o calçadão. Um possível bêbado ao volante dando cavalo-de-pau na esquina. Vez ou outra uma viatura policial com o vermelho do giroflex refletindo nas vidraças.
 
Tomei um copo de água e voltei para a cama. Dormia um pouquinho e acordava novamente com a dorzinha chata. Assim foi até o dia amanhecer.
 
Levantei-me, tomei café e fui andar no calçadão com a patroa, para ver se a dor dava o fora. Queixei-me. Recebi sugestão de sair à cata  de um médico ou ir direto ao hospital.
 
- Não é necessário. Já passa.
 
Voltei para o apartamento e a dor continuou comigo. Lembrei-me de um conhecido e poderoso empreiteiro que havia sido acometido, poucos anos atrás, por uma dor no tórax, também de madrugada, e só foi procurar recurso de manhã, quando já era tarde. Critiquei-o, na época, porque bastaria ele ter estalado os dedos e um helicóptero o levaria rapidamente ao melhor hospital do país. Não o fez. Esperou demais, chegou à clínica praticamente em óbito. Deixou uma ex-mulher, uma viúva, filhos e fortuna.
 
Resolvi, então, dar uns telefonemas atrás de um médico. Constatei que havia um que atendia pelo meu plano de saúde, mas não estava na cidade. Não encontrei outro com plano ou sem plano. Perto do meio dia fui ao hospital público.
 
Na recepção expliquei à atendente o que estava sentindo. Ela me apontou uma porta enorme e mandou que entrasse e pedisse para a enfermeira ir tomando as providências iniciais, enquanto a patroa preenchia a ficha com meus dados.
 
A enfermeira me atendeu prontamente. Levou-me a uma sala e mediu minha pressão sanguínea. Baixíssima como nunca. Ela disse que era por causa da angina. Pediu então que eu saísse por onde havia entrado e me dirigisse ao corredor do outro lado e aguardasse o médico chamar.
 
Tomei grande susto quando cheguei ao tal corredor. Gente a sair pelo ladrão. A patroa chegou. Foi a vez de ela se assustar. Fez meia volta e foi falar com a enfermeira que tinha me atendido. Voltou para me buscar.
 
De novo no lugar de entrada. A enfermeira ordenou que eu me sentasse e esperasse pelo médico, que não estava na sala, mas logo voltaria. Ele tinha ido até o setor de obstetrícia.
 
Enquanto eu aguardava, chegou uma senhora numa cadeira de rodas, vinda do interior do hospital. Segurava um envelope grande. Mostrava ansiedade em rever o médico.
 
Algum tempo depois, ouvimos o choro de um bebê que parecia ter acabado de nascer.
 
- Agora o médico não vai demorar - comentei.
 
De fato não demorou muito. Quando chegou, a enfermeira apontou para mim, explicou o meu caso. Ele me olhou pediu mais um pouco de paciência. Tomou o envelope das mãos da mulher na cadeira de rodas e sacou duas radiografias. Constatou fratura grave numa das pernas e mandou que providenciassem uma ambulância para removê-la a Paranaguá, pois ali, em Matinhos, não havia condições nem médico para fazer a cirurgia necessária.
 
Uma vez despachada a paciente da perna quebrada, o doutor mandou que eu entrasse na sala. Entrei com a minha dor e ele seguiu-me. Sentou-se e eu sentei. Contei o que sentia. Não me examinou. Disse que precisava de um eletrocardiograma. Fez a prescrição junto com dois comprimidos de AAS e um outro.
 
Indicou-me o local do aparelho, no mesmo corredor. Poucos metros à frente. Lá, informaram-me que o rapaz encarregado do exame tinha ido almoçar. Sentei-me e fiquei pacientemente esperando. Algum tempo depois uma senhora devidamente paramentada, parecendo ser a enfermeira-chefe, ao passar por mim perguntou se eu já havia sido atendido. Disse que precisava de um eletrocardiograma, mas que o encarregado estava na sua hora de almoço.
 
- Ah! Então é só esperar um pouquinho.
 
Continuei esperando. Depois de algum tempo, a enfermeira-chefe me encontrou no mesmo lugar. Fez a mesma pergunta e ouviu a mesma resposta.
 
- Então eu mesma vou fazer o exame - ela disse, convidando-me a entrar na sala do aparelho.
 
Pediu que eu me deitasse na mesa estreita e dura enquanto ela preparava tudo.
 
Percebi que ela mexia aqui, mexia ali, tentando fazer o equipamento funcionar. E eu maltratando minha coluna na mesa rígida como pau.
 
Finalmente, o encarregado chegou.
 
- O que é que está havendo com este aparelho que não liga? - perguntou a chefe.
 
- O automático está estragado. Só funciona no modo manual. Pode deixar. Eu faço o exame.
 
Imediatamente o rapaz ouviu uma reprimenda por não ter comunicado antes a encrenca do aparelho. Desculpou-se como pode, a enfermeira deixou a sala.
 
Em seguida ele me deu os dois AAS e o tal comprimidinho sublingual. Impressionante o poder do pequeno remédio. Mal se desmanchou sob a minha língua e a dor do peito foi desvanecendo-se até sumir por completo em poucos minutos.
 
Deixei a sala de exames com um rolinho na mão e sem dor. Fui ao encontro do médico.
 
Sentei-me diante dele, entreguei o rolinho. Ele foi desenrolando e examinando com atenção o gráfico traçado no papel. De vez em quando resmungava:
 
- humm... humm...
 
Eu estava ansioso para saber o que significavam aqueles humm, humm. Seria coisa boa ou ruim?  Ou não queriam dizer absolutamente nada?
 
Assim que o doutor chegou ao final do rolinho, perguntei apressado:
 
- E aí doutor? Tudo em ordem?
 
Ele posicionou a palma da mão direita no ar, paralelamente ao tampo da escrivaninha, e a balançou para um lado e para outro umas três vezes. Interpretei o gesto como um mais ou menos. Não sei se mais menos ou se menos mais. Se mais para pior e menos para melhor, ou mais para melhor e menos para pior. Em seguida pegou a caneta e, escrevendo num bloco de papel branco, falou sem me olhar:
 
- Vou precisar de um exame de sangue.
 
Arrancou a folha do bloco e me entregou, dando instruções para dirigir-me à porta no fundo do corredor, perto de onde eu fizera o eletrocardiograma.
 
Entrei na sala e expliquei para as enfermeiras o que eu queria. Uma delas me disse que a coleta do sangue deveria ser feita pela funcionária do laboratório terceirizado. Iria chamá-la. Mandou esperar.
 
Outra das moças disse que o resultado só viria lá pelas sete da noite e perguntou se eu tinha plano de saúde. Respondi que sim. Então ela sugeriu que eu fosse diretamente ao laboratório fazer a coleta. Dessa forma, o resultado sairia na hora. Mas, para isso, eu precisaria obter a autorização do médico. Alertou-me que ele não era fácil.
 
Voltei à sala do doutor. Contei a sugestão da enfermeira e saí de lá com o rabo entre as pernas, ao ouvir tão enfático e convincente não:
 
- O senhor está com suspeita de infarto agudo do miocárdio. Como é que eu vou liberá-lo? O senhor vai fazer o exame aqui no hospital.
 
Sentindo-me em cárcere privado, retornei à sala de coleta. No caminho, a patroa sugeriu que voltássemos para Curitiba. De carro, de ambulância, taxi.  Ameaçou ligar para o meu filho ir nos buscar. Ela própria não queria se arriscar a dirigir porque não tinha experiência com carro de câmbio automático como o meu. E estava meio nervosa para tentar aprender na estrada. Bobagem, mas mesmo assim recusei. Resignei-me e decidi acatar a decisão do doutor.
 
Na sala de coleta, sentei-me numa maca para aguardar a moça do laboratório. A enfermeira chefe apareceu por lá. Perguntou-me o que eu fazia ali. Expliquei.
 
Dirigindo-se a uma das enfermeiras pelo nome, ordenou que ela tirasse o sangue para adiantar o expediente. Assim, quando a funcionária do laboratório chegasse, era só apanhar o frasco e levar.
 
- Não gosto de ver sangue - retrucou a funcionária.
 
- Não há problema algum. Apanhe os apetrechos e faça a coleta.
 
A moça obedeceu. Achei muito estranho uma enfermeira, ou qualquer pessoa que fosse da área operacional de um hospital, incomodar-se com sangue. Fiquei preocupado com a agulhada, ou com o número de vezes que ela me espetaria para conseguir a quantidade de sangue necessária. Preocupei-me à toa, pois a danada sabia fazer o serviço direitinho. Estava só fazendo charme ou era preguiça mesmo. Não sei.
 
Após dar o meu sangue, voltei para o corredor e sentei-me num dos toscos bancos disponíveis. Comecei a pensar no seguimento do meu périplo. O que daria o resultado do exame? Se desse coisa ruim, ficaria internado ali mesmo, naquele nosocômio de parcos recursos? Iriam providenciar ou sugerir que a patroa providenciasse uma UTI móvel para me remover a um hospital em Curitiba?
 
E se, de repente, o suposto infarto cumprisse a ameaça e me tombasse ali no chão de cimento alisado? No velório os amigos certamente iriam comentar, altamente penalizados: coitado, tinha recursos para morrer melhor e foi terminar os dias no chão de um hospital municipal, com atendimento pelo SUS. É a vida, acrescentariam balançando tristemente a cabeça.
 
Pensei no meu carro estacionado na rua. Quem o levaria para casa? Então me lembrei de telefonar para o meu sobrinho mais velho que estava passando temporada em Caiobá.
 
- Você sabe guiar carro de câmbio automático?
 
- Nunca dirigi um. Por quê?
 
- Talvez precise que você dirija o meu, porque estou no hospital em cárcere privado.
 
- Hospital? O que aconteceu?
 
- Tem um tal de infarto agudo do miocárdio ameaçando-me. O médico não me deixa ir embora.
 
- Já vou aí.
 
Chegou rápido. Estava meio assustado. Mais ainda depois de ouvir-me dizer que exatamente naquela data, 18 de fevereiro de 2011, fazia quarenta e quatro anos que a avô dele, minha mãe, havia falecido de enfarte fulminante.
 
Se o meu enfarte se concretizasse, pelo menos estava me dando um tempinho para tentar driblá-lo ou me despedir, dar algumas instruções etc. Foi aí que me veio à cabeça as coisas que eu tinha no notebook da minha filha, em área específica e protegida com senha. Não queria que as fotografias que não tinham backup e alguns textos inéditos ficassem sepultados para sempre no computador. Então liguei para ela, que tinha ficado no apartamento da praia.
 
- Mariana, talvez eu demore ainda bastante tempo por aqui. Anote a senha da minha área no seu computador...
 
- Pai, por que isso?
 
- Como disse, posso demorar e você pode precisar de alguma coisa que esteja lá. Tem muitas fotos suas.
 
Até hoje não entendi porque fiz aquilo. Poderia simplesmente ter anotado a senha e guardado na minha carteira. Ou poderia tê-la passado para a patroa ou meu sobrinho que estavam ao meu lado. Não precisava deixar a menina preocupada. Mas acho que  eu queria falar com ela mais uma vez. Na eventualidade de ser a última, o subconsciente inventou um pretexto.

Ao mesmo tempo em que eu pensava sobre o meu caso em particular, refletia sobre o estado lastimável da saúde no nosso País. Em que pese o esforço de grande parte dos médicos e funcionários do sistema, que tentam fazer muito com o pouco disponível, a situação geral é caótica. Ao ver o estado daquele hospital, que com certeza absoluta não é o pior no gênero, senti nojo dos governantes corruptos e incompetentes, e principalmente dos políticos de causa própria. Não sei como é possível que essa gente consiga dormir, sabendo do sofrimento do nosso povo na busca por um direito mínimo e constitucional, enquanto eles, nababescamente, dispõem do melhor em tudo. Também não entendo como certo presidente da República ousou ter coragem de pretender sugerir ao governo americano adotar no seu país o modelo de sistema público de saúde do SUS. Devia estar zombando, de nós e do pretenso interlocutor. Ou desconhecia completamente a nossa triste realidade, esquecido da sua tão propalada origem humilde.
 
Lá pelas quatro da tarde, a enfermeira-chefe veio até mim e sugeriu que eu fosse para casa e voltasse às dezenove horas para ver o resultado do exame. Percebi que havia trocado o plantão médico. O bravão não estava mais lá, por isso ela se encorajara em me dispensar.
 
- Bom, acho que a senhora já viu coisa muito pior, por isso está me dispensando com tranquilidade - eu disse.
 
Ela respondeu com um sorriso. Confiei na sua experiência, imaginando que ela deveria ter pensado que se eu ainda estava vivo àquela hora, não seria desta vez. Fui embora dirigindo meu carro, feliz e contente, desfrutando a minha liberdade condicional. Meu sobrinho foi para a casa dele, prontificando-se a ir buscar-me às sete, para voltarmos juntos ao hospital.
 
Como estávamos sem almoçar, eu e a patroa fizemos um lanche reforçado. À hora combinada meu sobrinho foi me apanhar.
 
No hospital, fui atendido por uma jovem e bonita médica. Olhou meu exame de sangue. Não deu nada. Voltou a desenrolar o eletrocardiograma. Examinou o gráfico inteiro. Auscultou-me o coração.
 
- O senhor não tem nada preocupante. Apenas algumas extra-sístoles indicadas no eletro. Isso é normal. Por via das dúvidas vou pedir uma radiografia do tórax.
 
Como bom paciente, fui para mais um exame sem reclamar. Voltei para a médica com uma baita chapa nas mãos. Ela a examinou atentamente. Não encontrou nada de irregular.
 
- A sua dor pode ter sido apenas muscular. Vou lhe receitar um analgésico e relaxante. Caso volte a sentir dor, tome-o.
 
Meu sobrinho deixou-me em casa são e salvo. Peguei minha filha, fui à farmácia comprar o remédio para o caso de voltar a sentir dor e depois fomos comemorar com uma suculenta lasanha à bolonhesa na Cantina do Nono, acompanhada por um tinto colonial. A patroa preferiu ficar, para assistir à novela.
 
Não precisei do remédio. No dia seguinte, um sábado, subimos a serra para a churrascada em comemoração ao aniversário de duas sobrinhas e um sobrinho. Quando cheguei, a notícia do meu cárcere hospitalar já tinha se espalhado. Fui cercado pela turma que queria detalhes do acontecido e saber se eu estava bem. Preparando um Dry Martini com uma casquinha de limão, tranquilizei-os.
 
- Estou muito bem, obrigado. Não foi nada. Apenas gazes. Muito provável que aquele tal comprimidinho fosse um Luftal...


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N. do A. - Na ilustração, Ciência e Caridade de Pablo Picasso (Espanha, 1871 - França, 1973).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/11/2012
Reeditado em 08/09/2021
Código do texto: T4012498
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