Sábado cinza

Pensei bastante. Acredite o quanto for possível acreditar em alguém que você não conhece bem. È verdade. O problema é que, pensar nem sempre traz soluções práticas e urgentes. Mas pensei. Durante toda a semana quis livrar-me daquela ideia fixa, juro que quis. Ideia que me tomou de súbito os pensamentos e os sonhos noturnos. Porém, se serve para me justificar digo, acredite, eu não quis fazer o que fiz.

Ela, começou inocente e sorrateira, até que passou a seguir todos os meus passos. Uma ideia fixa é quase uma sombra, a nossa própria sombra. E respirava junto a mim todos os dias. Todos eles desde que fui traído. Disso você precisa saber. Há exatamente um ano eu fui traído e da pior forma. No dia do meu casamento acordei com um calor diferente. Um sufocamento que a princípio parecia-me normal já que o tempo havia mudado e o céu estava nublado e parecia represar algo quente e denso que teimava em não cair.

Neste mesmo dia eu descobriria tudo, ou veria o que estava diante de mim e eu ainda não havia percebido. Depois do café e do bom dia ao telefone, despedi-me daquela que dizia-se minha amada prometendo vê-la pessoalmente diante do altar. Saí em busca do terno e dos sapatos que usaria naquela noite em que diria sim ao fato de dividir toda a minha vida com alguém especial.

O dia passou rapidamente e sem maiores dificuldades. Tudo pronto, só faltava encontrar-me com ela, e logo essa hora chegou. A igreja já estava bem cheia, e eu apressadamente, assumi meu posto junto ao altar. Esperamos, os convidados, os padrinhos e eu uns quarenta minutos até que ela apareceu, parada diante da porta principal da igreja, vestida de brilho e suavidade em um belíssimo vestido de noiva.

Entrou séria, passo após passo sem olhar-me nos olhos, fazendo isso somente quando estava já diante de mim, pegando minhas mãos devagar e dizendo baixo ao meu ouvido que não poderíamos levar aquilo à frente. Tinha outro há aproximadamente um mês e não tinha condições de assumir tal compromisso. Tudo rápida e calmamente, como quem pergunta como foi o dia, ou se está tudo bem.

Saí sem olhar para ninguém ou me justificar. Saí quase correndo, o sangue gelado no rosto e nas mãos e nenhuma explicação para aquilo. Nenhuma. Aquele com certeza não foi o momento e tão pouco o local foi o apropriado para aquela revelação, se é que existe melhor forma de trair ou contar que traiu.

Ao sair às pressas minha paz foi a primeira a fugir dando lugar a uma ideia de vingança que eu não denomino vingança, apenas recuperação dessa paz perdida, da confiança pisada e do amor a mim mesmo. Esse um ano sem dormir fez-me acordar naquele sábado, cansado, pesado, porém decidido. Sem nada a perder, tomei uma xícara de café enquanto refletia em meu futuro e no futuro de muitos que passaram pelo que eu passei.

Algum tempo depois, parei em um bar, ali mesmo no centro, abri o jornal e deixei o tempo correr junto às ideias. Imóvel, permaneci por horas, observando tudo a minha volta. A imagem da igreja onde tudo tinha ocorrido ia crescendo diante dos meus olhos. Nenhuma mudança desde então. Dei uma volta pelo quarteirão. Uma volta que levou mais umas duas horas, só para que todas as ideias tomassem corpo e chegassem onde precisavam chegar. Olhei, despercebido em meio ao vai e vem da tarde a loja que me chamou mais a atenção, repleta de belos vestidos de noiva, tão belos quanto o que ela usou para me dizer que iria embora com outro.

Entrei calmamente e não demorou para que a primeira vendedora me visse e perguntasse o que eu deseja ver. Acenei que estava tudo bem, não precisava de ajuda, e mesmo sem dizer palavra ela compreendeu e me deixou sozinho “escolhendo”. Foi aí que senti a mesma dor no peito como se ainda soassem as palavras dela aos meus ouvidos.

Tirei do bolso da calça um pequeno vidro de perfume e sem ser visto, derramei inteiramente sobre um dos vestidos que estavam sobre o balcão nos fundos da loja. Acendi um cigarro colocando-o abaixo do tecido embebido de perfume que pegou fogo rapidamente.

Entenda, eu precisava ser ressarcido, precisava cobrar uma dívida e de alguma forma isso precisava ser feito. Ninguém faria isso por mim e como não tinha mais notícias dela, que estava longe com outro, que eu desconfio quem seja, mas a vida ainda não me permitiu saber quem era, precisava de outra alternativa, mesmo que a vingança fosse indireta. A loja estava cheia e enquanto a fumaça perfumada subia, eu saí sem ser visto.

E assim, voltei ao mesmo bar, observando de longe o corre-corre, a fumaça que subia e o fogo que tomava pouco a pouco cerca de oito lojas. Os bombeiros chegaram, as horas passaram e foi preciso muito esforço para que a igreja, palco de minha desilusão, também não fosse inteiramente queimada.

Observei a tudo imóvel, percebendo que a cada vestido queimado, minha mágoa era dissipada. A cada loja que se tornava em cinza, minhas ideias ficavam mais claras e a nuvem de rancor instalada sobre meus olhos subia junto a fumaça quente e macia que eu quase podia apalpar. Seis mil vestidos queimados e oito lojas destruídas naquela tarde de sábado. Levantei-me e voltei ao meu apartamento. Nem assim o sono voltou. Esse, parece que desaprendeu a conviver comigo, mas agora você já sabe, que a vida se encarrega de pôr tudo em devido lugar.

Ninguém fala em crime. Guarde meu segredo, não houve crime nem arrependimentos. Seis mil “elas” foram impedidas de ir embora vestidas de noiva levando o sonho de alguém na bagagem. Mais de um milhão não paga um prejuízo como o que tive. Sendo assim, o que pode ser julgado como capricho pessoal evitou outros possíveis caprichos desse tipo. Acredite, uma rua inteira não é nada quando você não tem rumos.

Agora, duas semanas depois está tudo bem, não se preocupe. O coração está quieto enquanto eu olho pela janela. No meu silencio estou seguro. Só você sabe um pouco do que mostro. Jogo fora o jornal comprado naquele sábado. Apago as luzes e ligo o som. As luzes da igreja estão apagadas, as do meu pensamento também. Já passou. Menos a imagem dela a dançar dentro de uma urna que em todas as fotos daquele período são queimadas. Já passou. A fumaça se esvai. Não serei mais atingido.

Charlene França.