Num jardim de Lisboa


                              Adeus qu´eu parto, senhora;
                              Negou-me o fado inimigo
                              Passar a vida contigo...
                                               Goncalves Dias



     1. O navio Ville Bologna vinha da Europa. Nas costas do Maranhão, naufragou. Isso aconteceu no dia 3 de novembro de 1864. Faz, amanhã, cento e quarenta e oito anos. 
     2. A bordo do Ville Bologna viajava um poeta, que não sobreviveu ao naufrágio. Engolido pelas ondas impiedosas do mar revolto, zangado, Antônio Gonçalves Dias morreu olhando pro seu Maranhão idolatrado, a terra das palmeiras farfalhantes... Palmeiras "Onde canta o sabiá", como diz ele nos versos que escreveu no seu exílio voluntário, na cidade de Coimbra, em 1843.
     3. A gente cresce ouvindo e recitando um  de seus mais belos poemas: A Canção do Exílio. No jardim da infância, ouvi, muitas vezes, minha professorinha declamando a plenos pulmões: "Minha terra tem palmeiras,/ Onde canta o Sabiá;/ As aves que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá." O sabiá de Gonçalves Dias - ave símbolo do Brasil - muitos anos depois lembrado por outro vate maranhense, Catulo da Paixão Cearense, no conhecido poema Um Boêmio no Céu.
"São Pedro - Em que país do mundo tu nasceste/ com teu estro bravio e senhorio?
Boêmio - Num Paraíso esplêndido: - o Brasil!
São Pedro - Qual foi teu Estado, teu torrão?
Boêmio - O Estado do talento: - o Maranhão!/E o Maranhão, Senhor, tem muitas coisas,/ que o céu não tem nem terá.
São Pedro - Aponte-me um só e bastará!
Boêmio - "Minha terra tem palmeias,/ onde canta o sabiá".
São Pedro - (sorrindo) - Aqui, no céu, há pássaros divinos/ que o Brasil não ouviu nem ouvirá!
Boêmio - "As aves que aqui gorjeiam,/ não gorjeiam como lá".
     4. Repetindo o "óbvio ululante": um poeta só é legítimo, completo, autêntico se tiver muitos amores, ou um grande amor; uma irrefreável paixão por alguém. Seja essa paixão permanente ou passageira; ostensiva ou escondida. Tanto faz.
     5. Antônio de Castro Alves, para exemplificar, amou muitas mulheres! Lembro duas: Eugênia Câmara e Idalina, "a primeira mulher que se entregou completamente à sua força sedutora." Para Eugênia, entre outros versos, tão lindos quanto, Castro Alves escreveu: "E à noite no mesmo leito/Reclinada no meu peito/Hei de ouvir os cantos teus.../ Por cada estrofe bonita/ Do teu seio que palpita,/ Terás cem beijos... por Deus!"
     6. Poderia, aproveitando o embalo, também falar sobre Amélia Oliveira, o grande amor de Olavo Bilac. A ela, o poeta das estrelas dedicou ternos sonetos.
     7. Com Gonçalves Dias não podia ser diferente. O autor de I-Juca-Pirama curtiu, também, uma grande paixão: Ana Amélia Ferreira Vale, bela maranhense. Lances dramáticos e comoventes ajudaram a escrever a história amorosa do poeta de "Os Timbiras" com sua bela musa. 
     8. Gonçalves Dias - 1852 - pede Ana Amélia em casamento. Tem seu pedido sumariamente negado. Motivo: a "ascendência mestiça" do apaixonado poeta. Frustrado, Gonçalves Dias partiu para Portugal. Enquanto Ana se casava, num ato de vingança, com homem de cor, sem casta, enfrentado o "contra" formal de sua família.
     9. Tempos depois, abalado com a falência do marido, o casal decidiu morar sabe onde? Em Portugal! E num jardim público de Lisboa Gonçalves Dias se depara com Ana. Deu-se o que Josué Montello chama de uma "volta lírica ao passado." O reencontro mexeu com os dois. Mas nada mais podia ser feito. 
     10. Restou a Gonçalves Dias, "de um jato", falar a amada, através do primoroso e sentido poema Ainda uma vez - adeus!  Que começa assim: "Enfim te vejo!/ - enfim posso,/ Curvado a teus pés, dizer-te,/ Que não cessei de querer-te,/ Pesar de quanto sofri./ Muito penei! Cruas ânsias,/ Dos teus olhos afastado,/ Houveram-me acabrunhado,/ A não lembrar-me de ti!" E assim termia: "Lerás, porém, algum dia/ Meus versos, d´alma arrancados,/ D´amargo pranto banhados,/ Com sangue escritos; - então/ Confio que te comovas,/ Que a minha dor te apiede,/ Que chores não de saudade,/ Nem de amor, - de compaixão."
     11. Contam os que escreveram sobre este inconcluso amor, que  Ana Amélia, ao tomar conhecimento de Ainda uma vez - adeus!, o copiou "com o seu próprio sangue". 
Gonçalves Dias (1823-1864) morreu amando sua Don´Ana, com quem teve o último encontro, num banco de um jardim, na doce Lisboa. C´est la vie!

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 02/11/2012
Reeditado em 27/11/2019
Código do texto: T3965725
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