Na lata, no delirio, ..., a entrega total! (EC)
Muito singular o que existiu nas antigas revistas de histórias em quadrinhos e mais atualmente em filmes e desenhos televisivos...
Em minha infância, transmutando para a adolescência, tornou-se mote a presença de mulheres heroínas com poderes super, que nos faziam delirar. Então, vibrávamos com as performances da mulher-maravilha, mulher-gato, mulher-morcego, mulher-invisível, mulher-aranha, mulher-hulk, mulher-elástica...
Mais recentemente, pulularam na telinha: mulher-samambaia, mulher-melão, mulher-melancia, mulher-morango, mulher-pêra...
Porém,..., nada comparável a inverossímil Mulher de lata que conheci...
Maria Só, este seu nome de batismo.
Uma das milhares de Marias soltas em neste enorme território chamado Brasil.
Como dizia antiga canção, homenagem à mãe terrestre daquele que por aqui esteve para pregar a paz, o amor, a solidariedade... Não lhe chamaram Maria de Santa, tal como as Maria de Nazaré, Maria do Socorro, Maria da Conceição, Maria Celestina, Maria Madalena e nem Maria José, juntando os nomes dos pais do Nosso Senhor por aqui!
Também não lhe chamaram Maria de flor, tais como as Maria Odália, Maria Rosa, Maria Hortência, Maria Margarida, Maria Violeta, Maria Orquídea, Maria Camélia...
Maria Só não conheceu pai nem mãe e nem seus parentes!
Desde pequenina, conheceu as ruas e a luta pela sobrevivência. Foi ultrajada, violada, espezinhada, violentada, humilhada, mas a tudo sobreviveu!
Aqui e acolá, conviveu com pessoas que lhe deram alguma guarida e com pessoas que só lhe deram desamor.
O sofrimento, as agruras, as faltas, as indiferenças fizeram com que criasse em seu inconsciente seu próprio mundo.
Com restos de lâminas de lata conseguidas no lixo de uma empresa nas proximidades do local onde ‘residia’, pernoitando nas noites chuvosas, friorentas, abafadas, confeccionou espécie de fantasia, complementada por um cabo de vassouro e uma grande panela velha de alumínio (talvez sob influência do menino maluquinho, obra do cartunista/escritor ZIRALDO...) que portava sobre seus belos, mas encardidos cabelos encaracolados!
Aos meus olhos retratava um protótipo de Don Quixote de La mancha (ou talvez de Dulcinea...), versão feminina tupiniquim do ‘atrapalhado’ herói retratado por Miguel de Cervantes, sem seu partner, o Sancho Pança e também sem também seu cavalo Rocinante!
De forma inofensiva passava seu dia empunhando o cabo de vassoura como se fosse uma espada, simulando enfrentar seus fantasiosos dragões...
Passou a ser o divertimento de todos aqueles que de forma contumaz ou esporádica tinham algum contato com sua inusitada figura, tornando-se figura conhecida por todos como A MULHER DE LATA, heroína que residia nos baixos do viaduto!
Sem artifícios de repentes de violência ou procedimentos inadequados, até conseguia aqui e acolá algum momento de atenção e algumas palavras daqueles que a viam e eram por ela abordados.
Foi quando um inesperado evento ocorreu!
Como fazia cotidianamente, postada em esquina razoavelmente transitada em pleno horário de rush, fazia suas performances imaginativas ‘em luta com seus dragões’, quando enorme alvoroço chamou-lhe atenção. Em meio ao intenso tráfego, desgarrando-se da mão protetora de sua genitora, uma criança correu e infiltrou-se em meio ao buzinar e freadas bruscas originadas.
A MULHER DE LATA, em mais alto estilo de imaginária heroína incorporada, tanto quanto lhe permitiu suas improvisadas vestes, correu para o meio do tráfego e conseguiu, num repente, aconchegar junto ao seu peito recoberto de lata, aquela frágil criaturinha! Nas calçadas, curiosos observavam para a cena inusitada!
Foi quando houve o desenlace final! Um veículo, que vinha desenvolvendo razoável velocidade, não percebeu o ocorrido, livrou-se de inevitável batida na traseira de outro veículo que se encontrava parado devido ao atropelo causado e 'colheu' de forma violenta a heroína e seu protegido, que foram lançados à distância pelo impacto.
Houve uma comoção geral. Enquanto a mãe da criança corria em prantos em direção àquele emaranhado de lata distorcida, em meio ao qual percebia-se o liquido vermelho do sangue esvaindo-se, alguns curiosos já lá se encontravam resgatando dos protetores braços da ‘indigente’ a criança sã e salva. Como ‘por encanto’, uma viatura salva-vidas chegou soando de forma estridente suas sirenes, de onde desceram dois paramédicos que dirigiram-se de imediato ao local dos fatos. Em um rápido exame, um dos paramédicos entregou a criança aos braços da desesperada mãe, informando-a que ficasse tranqüila pois de alguma forma o impacto sofrido pela criança havia sido amortecido por algo ou alguém e nada de mais grave havia ocorrido com ela, apenas ficando na seara do susto tomado!
De imediato, juntou-se ao segundo paramédico que, ajoelhado examinava aquele corpo estendido entre aquela porção de lâminas de lata. O primeiro que havia chegado olhou para o recém-chegado, fez um sinal negativo com a cabeça e sentenciou, denotando sentimento de consternação:
--- Não há mais o que se possa fazer! Perdemos A MULHER DE LATA!
Felizmente, para dar demonstrar que há ainda resquícios de humanidade em nossa atual civilização, aqui e ali percebia-se dentre os presentes, lágrimas sentidas denotando uma solidariedade tardia àquele ser humano, que mesmo à revelia de colocar em cheque a sua própria existência, enfrentou seus dragões de aço, simbolizados pelos carros que transitavam para proteger a vida de um incapaz de fazê-lo por suas próprias força , mostrando que mesmo em sua aparente insanidade mental, houve perfeita harmonia com o que pregava Jean-Jacques Rousseau, quando afirmava: “O homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe...”.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - A Mulher de Lata
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